'A cidade anda muito violenta'
Ela nunca mencionou a palavra câncer. Minha avó, mãe de meu pai, era daquelas mulheres que, de algum modo, foram enviadas ao nosso convívio portando qualidades tão diferentes quanto raras.
Quando chegou a biópsia do pequeno fragmento do céu de sua boca, ela, que jamais em seus quase noventa anos colocou uma única guimba de cigarro nos lábios e que nunca passara de meia taça de um bom vinho por semana – receita de um médico de quem havia assistido uma reportagem num programa de televisão – , passou a não ter escolhas.
Da ausência de caminhos, as grandes pessoas fazem mapas de tesouro mais precioso.
E ela era enorme nos seus 1,55m.
Não havia como dizer que aquela ferida, que já começava a lhe incomodar, representava, na verdade, uma espécie de bomba relógio sem hipótese de ser desarmada.
Era óbvio, também e no entanto, que a hipótese oficial, a versão cretina que tivemos que arranjar, não seria aceita por sua prodigiosa sensibilidade.
Mas a 'terrível bactéria', num ato de injustificável bondade, foi tão bem recebida por aquela senhora de ralos cabelos brancos e óculos desproporcionais ao seu pequeno rosto que, houvesse algum desavisado à época, o descalabro poderia até soar como absoluta verdade, de tanto que ela própria repetia a inverossímel versão.
Dona Edna, absolutamente consciente dos dias que se seguiriam, amparada por uma caridade inimaginável nestes tempos de século XXI, optou por tranqüilizar a todos, fazendo-se de rogada de seu próprio drama, não querendo, como sempre, atrapalhar a rotina de ninguém.
Que seguissem as maledicências à atuação do galã da novela das oito (...pra mim, artista de verdade era o Tarcísio Meira quando era moço...), que continuassem freqüentando o Maracanã nas tardes de domingo (rezei tanto pelo Fluminense... Ainda será o campeão...), que não cessassem os churrascos de família (Eu prefiro ficar descansando...) e que se honrasse os pagamentos das prestações do último modelo de computador portátil vendido nas lojas de departamento (...qualquer dia, ainda aprendo a mexer nessas coisas...).
Seus lamentos, invariavelmente em surdina, só eram percebidos quando alguém, de supetão, entrava em seu pequeno quarto, franciscanamente decorado com uma pequena mesa de cabeceira e um discreto altar de madeira escura onde guardava todos os seus inúmeros santos já havia mais de quatro décadas.
Numa dessas ocasiões - recordo-me perfeitamente - a forma por ela encontrada para justificar suas lágrimas, foi prontamente me pedir: - Meu neto, acho que entrou um cisco no meu olho. Se incomoda de soprá-lo?
Muito provavelmente eu tivesse, minutos antes, reclamado do trânsito no centro da cidade e da demora do elevador.
Soprei com cuidado. Cretinos também sabem soprar.
O dia de sua partida, bem depois de duas operações tão complexas quanto inócuas e invasivas, veio juntamente com um belo nascer do sol. Ela jamais partiria de madrugada. “Cuidado, a cidade anda muito violenta”.
Ao lado de seu pequeno corpo, minutos antes de se iniciar o processo de cremação, apenas poucos familiares e alguns conhecidos.
A dor, amenizada pelo egoísmo do alívio, era algo de fato pungente no peito de todos que ali estavam.
Nas minhas veias, contudo, o sangue que corria tinha a temperatura e a viscosidade da mais profunda agonia. Arrependimento sincero e lancinante dos que caem em si, quando já se faz tarde demais.
Entre preces e planos – a alma humana é um paradoxo cafajeste – recordo-me de alguém, sem rosto e sem vida, batendo no meu ombro direito:
- Foi melhor pra ela, estava sofrendo muito, disse, enquanto segurava uma latinha de refrigerante dietético.
Apenas fiz que sim com a cabeça.