Flanela na alma

Amanheceu um belo dia na cidade de São Paulo.

Cedo, muito cedo, meu sono ludibriado pelo truque da hora adiantada ainda pode perceber as sombras das árvores muito oblíquas sobre o chão, e o sol tímido brilhando com promessas de calor - ainda que o vento fresco da manhã pedisse um casaco leve. Pude notar o brilho especial do azul por detrás das poucas nuvens, tão especial que nem o horizonte quase sempre acinzentado da metrópole conseguiu embaçar.

Percebi também que era mais um dia, um dia com tantos outros, e que certamente já vi inúmeros iguais a este. Mas a nossa percepção não é linear. A nossa percepção dos dias, das luzes, do calor ou do frio, do sol ou da chuva, está vinculada de forma inegável à pupila mais ou menos dilatada de nossa alma. Quando nosso interior não permite, as imagens, por mais belas que sejam, nos aparecem sem contornos definidos e nada têm de especial. Pelo contrário, se nossa disposição interna está aberta e permeável, as mesmas imagens se nos mostram em toda a sua beleza e colorido. É o olho externo que vê, mas é a alma que processa e categoriza as imagens vistas.

A paz é nossa lente. É ela que dá à alma a capacidade de enxergar beleza ou podridão em tudo o que os olhos percebem.

Lembrei-me de uma mensagem particularmente marcante, dentre as inúmeras que recebo diariamente. Constava de duas figuras. A primeira, belíssima, de um pôr de sol fantástico, com montanhas ao fundo e árvores formando uma bela moldura. A segunda, uma tempestade assustadora, tudo cinza e tenebroso, e no centro de toda aquela agitação uma árvore que abrigava um pequeno pássaro no seu ninho, aparentemente confortável e indiferente à tormenta externa.

A mensagem perguntava qual das duas imagens transmitia mais paz. Responde-se sem pensar que é a primeira, evidentemente. Mas a resposta correta deveria ser: a segunda. Porque é fácil ter paz em situações confortáveis e brandas. Difícil mesmo é estar como o pássaro, tranqüilo e placidamente acomodado em seu ninho enquanto a natureza em torno desaba...

Nunca mais me esqueci desta mensagem. E por mais difícil que às vezes de fato seja, procuro sempre me lembrar de passar uma flanela limpa na minha alma para que ela, transparente, possa permitir a visão total e sem distorções da real beleza da vida - essa beleza intrínseca ao mero fato de acordarmos pela manhã e nos conscientizarmos de que mais um dia nos foi presenteado, para dispormos dele da melhor forma possível.