Dois filhos, um pai (ao meu pai)

Um certo dia, Arnaud virou para mim, dizendo algumas das insensatezes típicas dele.

- O que você acha, afinal?

- Nosso pai… - parei um pouco de escrever o conto - você não devia compará-lo assim aos outros…

- Por que não? Tudo é comparável, tudo é calculável e redutível à números e algoritmos seqüenciais! Se tiramos sempre uma média, com notas e interpretações numéricas, por que não qualificá-lo?

Parei um pouco para pensar… se Arnaud tinha razão?

Sim, tinha.

Palavras como individualidade, personalidade entre tantas outras que nos faz lembrar que somos todos similares, mas não idênticos por conseqüência, foram esquecidas.

A cada dia que se passa, parece, pelo menos para nós, que todos aqui nessa beira do mundo têm que ter o mesmo gosto, as mesmas pretensões… se não somos idênticos, somos conseqüentemente excluídos, seja de círculos sociais, seja do trabalho. A sociedade quer pessoas idênticas, sem sabores nem ideais.

- Nosso pai ganharia nota 10 – conclui.

O pensamento matemático sempre nos foi fácil. Somar, diminuir e todas essas futilidades são simplórias para fazermos… principalmente porque sempre concordamos que números são inúteis e supérfluos. Mas já que Arnaud queria assim, eu brincaria também.

- Certo. Explique-se. – resmungou.

- Nosso pai nos deu uma educação perfeita. Tivemos algo que quase todas as pessoas da nossa idade não têm; liberdade. Nunca houve limitações para gente, Arnaud. Podíamos viver e imaginar o que quiséssemos. Não éramos levados a bares pela madrugada a dentro, não assistíamos novelinhas medíocres nem programas para cegos… nada nos era negado; poderia ser posposto, mas nunca nos faltou.

- Sim, mas quanto à cultura? A mente ultra-capitalista, as desnecessárias explosões contra movimentos sociais…

- Era uma forma de se expressar, Arnaud! Todos temos peculiaridades… deixe-o com as dele.

- Mas você sentia vergonha… nós sentíamos. As pessoas devem ser tratadas como iguais, esteja ela sendo serviente ou lhe dando ordens. Como me dava vontade de deixá-lo sozinho enquanto ele brigava com os pobres vendedores e balconistas dos lugares!

- Mais uma das qualidades da educação. Aprendemos isso vendo esses erros de nosso pai. Exemplos podem ser positivos ou negativos. Basta a gente saber interpretá-los. E, convenhamos, somos muito bons nisso graças a nosso pai!

- Ele nos ensinou o certo e o errado. – olhou para o livro pedagógico de inglês que folheava - Mas nunca nos disse como escolhê-los.

- Só eu posso dizer o que é certo ou errado para mim. Livre arbítrio, Arnaud… livre arbítrio.

- Preste atenção, Michel. Se ele soubesse de todas as escolhas que nós fizemos, você acha que ele ainda amaria a gente?

- Somos filhos, Arnaud. Não somos ele. Da mesma forma que você disse que ele tem atitudes reprováveis, nós também devemos ter as nossas! O que importa na função de pai é saber dar esse tipo de consciência ao filho. E isso ele nos deu.

- Concordo. Mas eu não daria um dez a ele…

Parei o olhar curioso sobre ele. O livro pedagógico em seu colo, folheando com certo desprezo pela qualidade questionável do material…

- Eu não daria um dez a ele por algumas poucas razões, mas que, obviamente, foram prejudiciais… por exemplo, ele nos deu coisas que ele mesmo não tinha condições de pagar. Apertava-se de todos os lados em dívidas, mas a gente tinha tudo que gostávamos! Educação particular, aulas de inglês, francês… comíamos o que quiséssemos, fazíamos o que nos vinha à mente. Ficamos um pouco longe da realidade.

- A gente não faz a mesma coisa hoje?

- Nós não sabemos economizar! Isso é crítico…

- Isso é maravilhoso, Arnaud. Nós gastamos com o que queremos. Ou seja, vivemos do jeito que gostamos, mesmo que seja no aperto!

- E como a gente vai fazer para comprar uma casa, um carro talvez, se não sabemos guardar dinheiro? Grandes montantes dele!

- Não somos materialistas…

- Somos infantilizados, criados como se fossemos viver para todo o sempre sobre a asa protetora dele… - estava bravo. Ele se sentia envergonhado de assumir seus defeitos… e saber-se uma criança crescida machucava o pretensioso Arnaud.

- Tivemos a honra de saber que sempre teremos alguém com quem contar, Arnaud. Imagine agora se você não tivesse a quem recorrer? Por tudo que já passamos e, com certeza, iremos passar, você se acha preparado para encarar tudo sozinho?

- Esse é exatamente o problema… não sabemos enfrentar nada sozinhos. Nem comer sozinhos conseguimos!

- Ponto…

Ficamos em silêncio. Eu tentava analisar o que se passava na mente daquele homem tão complicado. Não que eu fosse diferente, mas a diferença de um poeta para um contista é imensa…

E, enfim, eu entendi aonde Arnaud queria chegar. Como ele é péssimo para expressar-se!

- Eu também sinto falta de nosso pai, Arnaud. Mas, enfim, a vida é assim! Todos temos que ir mais adiante, temos que aprender a romper o cordão umbilical. Esse é nosso segundo nascimento, irmão. A vida adulta é a segunda vez que abandonamos um lugar seguro para enfrentar algo para o qual não estamos totalmente preparados…

- Eu amo meu pai, Michel. Sinto falta dele por ele estar tão longe. Sinto falta de seu abraço e de suas risadas homéricas. A televisão no mais alto volume enquanto ele ronca no sofá, vê-lo lendo as informações nutricionais, os ingredientes dos produtos, mesmo que isso não fizesse diferença alguma para ele! As reclamações desnecessárias e as constantes vontades de ajudar e estar por perto – parou um instante para disfarçar o choro - E é esse o problema. Estamos longe da asa quente e macia de nosso pai. – vi que seus olhos estavam marejados. - Eu nunca disse para ele que o amo. Sinto vergonha. Você também. Aliás, já lhe subiu à boca e você se recusou a falar!

- Várias vezes, garanto-lhe. Mas ele sabe disso, Arnaud. Ele sabe tanto que faz questão de dizer isso para a gente. A facilidade de se expressar que ele tem compensa a nossa…

- Mas como você mesmo diz, a gente é infantilizado! Quando iremos crescer? Quando aprenderemos a lutar sozinhos?

- Você quer a verdade, Arnaud? A gente nunca vai aprender.

Seu olhar veio em minha direção interrogativo e piedoso. Fechou o livro e se aproximou de mim, apoiando a cabeça no meu ombro.

- Ele nunca vai deixar a gente, não é?

- É. E um pai como ele é assim. É pai para sempre, estejamos nós certos ou errados. Ele sempre estará do nosso lado. Longe ou perto. Ele sempre amará a gente.

Arnaud levantou o rosto com um sorriso, tirou a lágrima do olho e caminhou até a cozinha.

- Quer uma coca-cola estupidamente gelada? Ou prefere com cubos de gelo?

- Gelo? – gritei - Não, pelo amor de Deus! Senão vira Pepsi…

Michel Montsalvy
Enviado por Michel Montsalvy em 19/11/2008
Reeditado em 19/11/2008
Código do texto: T1291759
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