Minha Telefunken

No quarto de paredes brancas não tinha muita coisa a se destacar. Uma escrivaninha de mogno, talvez. Ou então a cortina de painel com detalhes em verde e vermelho e um quadro com uma moldura metálica. Não lembro da tela.

 
Além disso, apenas o carpete, marrom ou bege, dependendo do critério estipulado pelo observador.


Pra mim, marrom.


Todas as atenções eram da televisão. Não recordo se de 20 polegadas ou menor. À época, entretanto, mais parecia um telão. Grandes questões, grandes embates filosóficos, e certamente um sem número de dogmas, advieram daquele aparelho da Telefunken, com botões que giravam, na medida em que se buscavam novos canais.


Tenho uma marcante recordação de um especial do Raul Seixas. Fim de Ano na Globo. Ele voava dentro – ou sobre – um avião de fantasia enquanto cantava ‘plunct plact zum’. Bacana. Gostava dele. Do Balão Mágico não.


Lembro de outras coisas também, é lógico.


 
Sempre gostei demais do Cid Moreira. Cara legal. Mas tinha mesmo uma admiração maior pelo Sérgio Chapelin. Talvez porque ele morasse numa cobertura da qual a varanda de minha casa tinha uma vista quase direta. Nunca o vi ali.

Que ironia. Acho que me sentia um pouco dentro do Jornal por causa disso.


E mais lembranças...


Uma novela chamada ‘A Gata Comeu’. Era rodada na Urca. A protagonista era a Cristiane Torloni. Adorava a Cristiane Torloni, mas acho que com ela o que existia era apenas sexo.


Da Copa de 78 lembro muito pouco. Foi na Argentina. Muito papel picado dentro do campo. Bonito, muito bonito. Nunca mais comentei com ninguém sobre essa lembrança desde que completei quinze anos. Não gostava da cara de desconfiança quando afirmava peremptoriamente que tinha visto algum jogador brasileiro  - Rivelino, certamente – sentado sobre o travessão.

 
Já tentei reconstruir a cena (ou a jogada) toda. Impossível. A inverossimilhança da imagem está fadada a permanecer para sempre em algum recanto do meu cérebro. Queria que saísse. Ela me incomoda. Aos doze ou treze eu sonhei com o Rivelino apontando um estilingue para mim. Sentado em cima do travessão.

 
Acordei e fui fazer a lição de matemática.

 
Lembro também com muita nitidez de um desfile da Caprichosos de Pilares. Tem bumbum de fora pra chuchu. Não ganhou, mas foi aclamada por todos lá em casa como a melhor escola do ano de mil novecentos e sei lá eu o que.


Besteira, tudo besteira. Besteiras que permanecem.


 
E talvez sirvam de introdução para minha maior lembrança infantil. Algo que chega em minha cabeça de surpresa, e nos momentos mais inconvenientes. Da fila do banco ao momento do pênalti no Maracanã.

 
Estranho.

 
Na tal da Telefunkem estavam lá os três: o pretinho, o branquinho e o malhadinho. Todo dia era a mesma coisa. O Bozo, o Garoto Juca e toda a sorte de personagens bizarros, saídos – ou copiados – da – ou pela - mente doentia do Silvio Santos.

Mas esse quadro em especial – denominado com o criativo nome de Bozo Corrida - era tido lá em casa como o momento mais importante da manhã. É fácil explicar. Três cavalinhos, três irmãos, três escolhas.

 Naquele dia, uma segunda-feira, a imagem da tal da corrida me marcou.

 
Pela primeira vez todos apostamos o que tínhamos. Era tudo ou nada. Um código de ética que sempre prevaleceu naquele quarto de paredes brancas. Ganhou ta ganho, perdeu, um abraço.


Entre nós, no sentido de no meio de nós, literalmente, tudo foi despejado por cima do carpete. Carrinhos, uma bola oficial de futebol trazida da Alemanha, alguns brinquedos que faziam sucesso à época, e até um saco de pó de bala vermelha, uma guloseima que explodia na língua enquanto era digerida.


O gosto era duvidoso, mas talvez valesse mais do que a bola àquele momento.


Nossas vidas estavam ali.


Só as roupas e material escolar ficaram de fora.


Parece até que o Bozo esperou a definição de nossas regras para liberar os animaizinhos.


Foi tudo no malhadinho. Que largou bem.


Um corpo, dois... Chegou a botar três corpos de vantagem antes de tombar.


Tombar, eu disse.  Tombar vergonhosamente a pouquíssimos centímetros da linha de chegada.


Inacreditável. O malhadinho, o meu cavalo malhadinho, tombou e esmerilhou o focinho no chão.


O Bozo, que vivia rindo não sei do que (afinal vivia cercado de seres dantescos como Papai Papudo e Vovó Mafalda), gargalhou meio sem graça. Meus irmãos se abraçaram.


Eu chorei copiosamente.


Não lembro quem ganhou. Se me falassem que foi o azul eu acreditaria.


O malhadinho havia tomado tudo o que eu tinha.


Continuei chorando por alguns minutos e só depois desci ao Playground onde meus irmãos improvisavam uma partida de futebol enquanto mascavam balas bélicas.


Não gosto de lembrar disso. Menos ainda de saber que o malhadinho às vezes surge contornando a última curva nos momentos mais imprevisíveis.


Como o de agorinha, quinze minutos atrás, na esquina da Avenida Rio Branco com Santa Luzia.


Um caminhão matou um homem que vestia calça cáqui e carregava alguns papéis nas mãos. Parecia ser um homem de bem.


Não senti vontade de chorar.


Hoje talvez apostasse no Branquinho. Ou no azul.

Gustaalbuquerque
Enviado por Gustaalbuquerque em 24/11/2008
Reeditado em 24/11/2008
Código do texto: T1300500
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