Bota na área, Ruizinho!

Ele estava sentado numa poltrona reformada. Muito bonita. A almofada era listrada em branco e preto – listras grossas – e as laterais, bem escuras, tinham alguns rococós. Sei que era reformada, pois a tenho na lembrança de Itaipava, onde tínhamos linda casa, e para onde sempre volto – em pensamento - quando o mundo insiste em fazer mais peso do que meus ombros podem ou querem agüentar.

Atrás de si, uma parede quase vermelha – seria ‘tijolo’? – decorada com algumas telas de bom gosto.

Ele sempre teve muito bom gosto.

Pois naquele dia, enquanto discutíamos futebol, ou, sendo mais sincero, enquanto discutíamos o Fluminense, vivi um dos maiores divisores da minha vida. Uma data chave, uma espécie de sete de setembro ou primeiro de março.

Enquanto aquiescia com a cabeça alguma das inúmeras idéias futebolísticas do velho – com as quais geralmente não concordava – meu pensamento, em verdade, fazia uma longa viagem.

Morávamos num edifício chamado Mantegna. Rua Professor Manuel Ferreira, na Gávea. Apartamento 108. Havia acabado de jantar qualquer coisa e o esperava ansioso na porta principal, vestindo uma camisa tricolor que jamais abandonei, independentemente do tamanho necessário para que pudesse vesti-la, invariavelmente repleto de orgulho.

O jogo, um jogo qualquer de meio de semana, começaria em pouco mais de meia hora, e meu pai já deveria ter chegado do aeroporto. Sei o quanto odiava São Paulo.

Quando enfim alguém mexeu na maçaneta, explodi. Marquei posição de sentido na beirada da porta, no mesmo momento no qual ele tentava pôr o pé direito no apartamento. Enquanto segurava a pequena bandeira tricolor com a mão direita, com a esquerda prendia a barra de seu paletó de modo a levá-lo prontamente ao G3.

Tínhamos uma marajó na garagem. E um ataque com Washington, Assis e Tato.

A dona da casa, já sabendo o desfecho da cena, que era usual, sequer olhou para a direção da porta. Limitou-se a pedir que trouxéssemos pão na volta. Era para o café. Confeitaria Nova Gávea. Boas lembranças também.

Ir ao Maracanã com ele era desfrutar das melhores coisas da vida. Falávamos sobre mulheres (não deixava, por ciúmes de minha mãe, que ele falasse tão bem assim...), sobre a cidade e sobre religião. Iniciávamos inúmeras conversas sobre política (não conseguia entender quase nada, mas lembro que ele não gostava muito do Brizolla) e sobre os perigos da adolescência que, um dia - ainda faltaria muito - eu iria atravessar.

Sua força sempre me impressionou. Jamais vi tanta decisão num olhar. Talvez por isso, ainda em tenra idade, o defendesse nas arquibancadas da vida, enquanto um sem números de torcedores reclamavam de suas opiniões – sempre mais ousadas – a respeito do posicionamento da equipe em campo.

Não havia dúvidas de que ele teria sido um treinador bem mais eficiente do que o Telê, de quem, a propósito era fã confesso.

Talvez inspirado em seu mestre, ele tenha aceitado, poucos anos depois, meu convite: seria o treinador do Santo Agostinho Futebol Clube, no primeiro campeonato infantil do Aterro do Flamengo. Copa Kichute.

Sequer preguei os olhos na véspera. Apenas rolava de um lado ao outro da cama. Em minutos, afinal, talvez tivesse que bloquear o botão vermelho que daria fim à guerra fria, ou, quem sabe, sendo mais comedido, bater o pênalti que decidiria a Copa do Mundo.

Quando enfim deixei a cama, lá estava ele: vitamina de frutas no imenso copo do liquidificador e algumas torradas com requeijão.

Entregou-me a camisa nove, embora desconfiasse que me daria a dez, o que só não ocorreu – imagino – porque queria passar o máximo possível de seriedade e – por que não? – a austeridade do Telê Santana.

Conseguiu brilhantemente. Belíssima preleção. Sabia como emocionar.

Mandou ao campo – não sem antes beijar a cabeça de cada um dos ‘atletas’ – um time repleto de Garrinchas, Rivelinos, Gérsons e Pelés.

Perguntei se poderia ser o Assis. Ele me abraçou e disse que só seu eu fizesse um gol no finalzinho, como o Assis costumava fazer contra o Flamengo.

Respirei fundo.

Mas a austeridade só durou mesmo até o apito inicial.

Antes que a primeira bola saísse em lateral, já havia jogado o boné dentro do campo. E antes mesmo que a segunda bola tivesse que ser recapturada pelos que faziam as vezes de gandula, já havia tomado a primeira advertência do juiz.

Assistiu ao segundo tempo atrás do gol, vestindo um casaco emprestado e usando uns óculos escuros certamente emprestados por alguém. Não poderia mais ficar à beira do local de jogo.

Era séria a tal da Copa Kichute.

Faltavam menos de cinco minutos. Ypiranga 2 x 0.

Nosso elenco não conseguia fazer o que o treinador determinava, aos berros, atrás do goleiro adversário:

- Bate nesse viado! Pressiona esse juizinho! Bota o dedo na cara dele!

O mundo era mais bacana antes do ‘politicamente correto’.

Três minutos.

O camisa dez - jogava trezentas vezes melhor do que o nove – fez uma jogada celestial. Driblou mais de quatro e tocou na saída do goleiro. Golaço.

Em instantes a bola já estaria no meio do campo - chutada pelo cara de casaco apertado - para o recomeço da partida.

Seria 2 x 1 se não fosse o velho:

- Todo mundo na área, porra! Até o goleiro. Ruizinho(o camisa 10), bate você! Bota na área. To falando. Bate na área, na direção do gol. Esse goleirinho é uma merda! Bate forte! Bota na área, Ruizinho.

Não sei porque cargas d’água conseguimos ouvir as ‘instruções’. Talvez porque ele já estivesse dentro do campo, por saber – tinha anos de Maracanã, afinal – que ninguém pode ser expulso duas vezes da mesma partida.

O fato é que todos foram para a área. O goleiro não queria. Mas foi também. A arquibancada se deliciava com aquilo. A falta, é bom que se diga, era quase dentro do gol.

Do ‘nosso’ gol.

Constrangedor.

Lembro como se fosse hoje. Ninguém esquece quando joga uma final de copa do mundo com o Telê Santana no banco.

A bola veio alta. Voava. Ultrapassou o meio de campo e continuo voando, voando, voando. Desceu com muita velocidade. Cheia de efeito.

Subiram todos.

Depois desceram.

E enquanto desciam, todos viram, certamente em câmera lenta, quando ela bateu em meu peito e quicou, carinhosamente, na frente da minha perna direita.

2 x 2. Assis.

Foi o abraço mais fantástico, mais mágico, mais vivo que tive na vida.

Ele dava cambalhotas e continuava a xingar o juiz. Mesmo chorando.

Nunca vi o Telê fazer isso.

Ganharíamos a Copa de 82, é óbvio.

O grande problema é que deviam ser umas 700 equipes a disputar o torneio. O empate, nesse contexto, era um resultado ingrato. Só uma equipe passaria e não havia tempo para disputa de pênalti.

Ficaria toda a responsabilidade nas costas do Ruizinho, nosso capitão.

- Cara ou coroa?, indagou o 'homem de preto'.

Ele, já sem óculos e casacos, não titubeou: - cara.

O juiz, um burocrata do futebol, voltou a questionar Ruizinho.

- Cara ou coroa, jogador?

Ele, de novo, e sem pestanejar, emendou mais alto: - cara, Ruizinho, peça cara.

O juiz – um ‘grandissíssimo’ filho da puta - chegou a esboçar um sorriso.

- Coroa, disse, mostrando a moeda de sei lá quantos centavos.

A guerra havia acabado. Alguém impediu que apertassem os botões.

Não foi ele.

Com quatorze anos não sabia distinguir heróis e vilões. Dez anos depois também não conseguiria. Diante daquela parede ‘tijolo’, finalmente consegui.

Não faz tanto tempo assim, infelizmente.

Ele se ajeitou na poltrona, com cara de poucos amigos, e me perguntou categoricamente:

- Filho, você escutou o que eu disse? Falei que o certo é mandar todo mundo embora e botar o time juvenil pra jogar. Você concorda mesmo?

Respondi que não, claro.

- Não. Acho que não. Na verdade isso é uma loucura. Acho que seria uma temeridade. Sou contra esses radicalismos, pai.

Mas queria - muito - ter respondido:

- Pai, você é um cara do caralho! Tenho muito medo de te perder.
Gustaalbuquerque
Enviado por Gustaalbuquerque em 24/11/2008
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