Liberdade e Aquário

Os olhos pequeninos de Clarissa miravam os peixinhos no aquário que seu pai lhe comprara de presente. Havia muitos, de diversas cores, de diversos tamanhos. Era a primeira vez que via um aquário. Com tamanha curiosidade passou a observar tudo. As bolinhas de ar que se formavam ali dentro, as pedrinhas coloridas, as plantinhas, uma bela casinha, a luz que descia suavemente e espalhava-se por toda a água. Se fosse um adulto que estivesse por ali, eu diria que haveria um seqüestro de paz. Mas no caso da criança não. Clarissa e os peixes compartilhavam paz, numa troca em que os dois mundinhos se misturavam e se confundiam. Naquele silêncio total que só existia ali e só ali poderia ser sentido, Clarissa contemplava estática aquela forma de vida e, no reflexo de suas claras pupilas, era possível ver peixinhos passeando pra lá e pra cá. Um vento intruso, mas também cúmplice do silêncio, penetrava sorrateiramente através de uma janela no quarto, levantando em ondas os finos cabelos pretos que lhe desciam sobre a testa. O mundo agora se concentrava naquela interação e a ela se resumia. Clarissa notava que os habitantes daquele mundo não morriam afogados. Gostavam de nadar porque não paravam quietos. Às vezes subiam até a superfície como que buscando ar para sobreviver. Deslizavam na água de uma maneira que ela não entendia como. Não tinham braços. Não tinham pernas. Como nadavam então? Alguns, sentindo-se vigiados ou ameaçados, grudavam o rosto no vidro, arregalavam olhos de detetive e pareciam querer comer justamente as pupilas da menina. Outros pareciam estar beijando o vidro. Enquanto outros, de longe passavam. Clarissa ouvira de seu pai que o correto seria colocar sempre pouca comida porque se comessem demais morreriam. (Peixes são gulosos e não enxergam limites em suas refeições). Aprendera também que não deveria batucar no vidro nem com a ponta das unhas porque isso poderia deixá-los surdos. A água deveria ser trocada de quando em quando e nunca deveriam também misturar certas espécies para não se confrontassem. Mas naqueles instantes Clarissa não pensava em regras. Apenas imaginava-se peixe, pequenininha, com toda aquela habilidade para nadar, colorida ou transparente, ágil. Num estalo de dedos mergulhou no aquário. Embora no início sentisse uma certa estranheza a tudo que a envolvia, logo superou esse sentimento e já não se importava porque agora era de fato um peixe e estava no seu lugar. Aqueles seres, outrora estranhos, passaram a ser seus amigos e com eles aprendia todos os mistérios da vida aquática, mesmo dentro daquele recipiente minúsculo Por lá ficou durante vários minutos, desbravando e divertindo-se. É verdade que a aventura fora excitante, mas chegara um certo momento em que Clarissa sentira-se incomodada. O aquário, embora fosse um lugar aparentemente divertido, passou agora a ser visto como uma grande prisão. Clarissa não tinha liberdade para ir além daquele espaço. Aquelas quatro paredes de vidro tornaram-se o limite de sua existência. Ah... isso irritou profundamente a menina que decidiu rapidamente voltar a ser o que era. Enxugou-se, ganhou novamente braços, pernas e dedos, sentiu de volta os pés nos sapatos de boneca pretos, o vento em sua franja, o oxigênio livre de água. A vida não teria sentido sem liberdade, constatou a pequena Clarissa. Foi aí que tomou uma decisão: a de segurar o aquário pelos lados, posicionar sobre o vaso sanitário e garantir àquelas criaturinhas a plena liberdade que lhes era devida.

Josué Mendonça
Enviado por Josué Mendonça em 29/03/2006
Reeditado em 30/03/2006
Código do texto: T130275