Que falta faz um pára-quedas...

Não era dia e noite também não era. E era lindo. Tão lindo que deu vontade de aplaudir.

Não o fiz, é óbvio. Não teria cabimento que levantasse e aplaudisse, assim, sem mais nem menos, de terno marinho e gravata vermelha. Além disso, ao meu lado e bem nervosa, uma senhora rezava agarrada ao terço de madeira.

E pra sepultar qualquer chance de uma manifestação mais extravagante, os avisos de apertar os cintos ainda estavam acesos.

Meus amigos, só posso concluir uma coisa: o Comandante estava apaixonado. Só podia ser. Certamente queria impressionar alguém. Aposto tudo na bela aeromoça de cabelos loiros e simpático sorriso. Tá certo, é preciso admitir: que pernas!

Mas o que chamava mesmo a atenção era a paisagem. Meus caros, era isso - e somente isso - que poderia interessar a qualquer um que se deixa chamar de gente. Que paisagem!

E olhem que o vôo para São Paulo é algo muito comum para mim. Quase nunca prazeroso. Peço perdão pelo eufemismo, mas deixar a Baía de Guanabara e descer em Congonhas não é lá um grande negócio.

Mas naquele dia foi.

Um belo traço -mais preciso seria dizer um belo rasgo- cor de rosa cruzava o céu, pouquíssimas nuvens refletiam diversas cores, e, de uma altura pouco usual, proporcionada pelo apaixonado comandante, a visão que tínhamos sobre o recorte da cidade de São Sebastião agia como uma droga que amenizava nossos dramas e corrigia nosso rumo.

Urca, Copacabana, Ipanema e Leblon. São Conrado. Uma de cada vez, sucedendo beleza e reafirmando poesia num fantástico arrebol.

Tudo tão intenso e tão vivo que o avião ganhou voz. Nunca tinha visto algo semelhante em inúmeras horas de vôo. Voz uníssona que passou a repetir insistente e efusivamente: - lindo. Lindo. Que lindo. Que coisa linda. Tudo seguido de um sem número de interjeições de espanto e prazer.

Era realmente muito bonito. Bem acima da beleza que estamos (des)acostumados a ver.

Pouco importava que o jornal que carregava nas mãos dava conta de um assassinato em Botafogo – mataram um casal na saída do cinema – e informava, em tom de algum deboche, que o futuro prefeito não sabia se cumpriria suas promessas de campanha.

"Grande coisa...". Taí algo verdadeiramente sem importância diante daquele cenário colorido.

Minha impressão a muitos metros acima de tudo era a de que a cidade vivia numa harmonia impensável pelos que andavam sobre suas calçadas. Queria tranqüilizá-los. Não poderia usar o celular.

Malditas regras. Pudesse ao menos usar um pára-quedas...

O Rio de Janeiro, enfim, havia se encontrado. O mau tempo era passado. Estava eufórico. Onde deixei o champanhe?

O céu, já na altura do Recreio dos Bandeirantes, assumiu matiz arroxeado, inédito, inimaginável. Não resisti. Engrossei aquela voz que ainda era bem nítida: - que coisa mais linda!

Pensei em Vinícius, no Jobi, no Império Serrano. Já não dava mais para ver a Mangueira, mesmo assim pensei em Cartola. E em Nelson Cavaquinho. Quantos Fla x Flus ainda assistiria...

Com carinho lembrei até dos engarrafamentos. E dos malabaristas dos sinais. Incongruências que maltratam a cidade, mas não tiram sua beleza. E o relógio? Certamente o relógio da Central estaria lá, impávido, brilhando sobre os trilhos dos trens.

Em instantes, frações ideais de tempo, lembrei das palmeiras do Jardim Botânico, da Quinta da Boa Vista, das pipas no céu. Das rodas de samba, das cores da Lapa, da beleza da Ponte que liga o Rio à Niterói. O mundo é um moinho, a praia vermelha, o sorriso do povo, a força de uma nova manhã, os sinais da Avenida Rio Branco. A velha fofoqueira na calçada suburbana.

Lembrei do amolador de facas que assoviava embaixo da janela da minha infância. E da saudade que tinha do caminho que percorria de casa ao ponto do ônibus que me levava à escola. Samba de Orly. Estacionamento do Shopping da Gávea. Os blocos de Carnaval. O centro velho, a pedra do sal. O Beco das Sardinhas. Tia Penha, Tia Palmira. Bira de Guaratiba. A dança dos orixás no posto seis. E os fogos. Como são lindos os fogos!

Minha infância em doces fragmentos. Meu futuro em promissoras intuições.

Foram instantes de encontro.

Não com o Rio. O Rio estava impregnado em mim. Jamais sairia.

Encontro comigo, com meus sonhos, meus amores. Encontro com a esperança. Um belo encontro com a esperança. Cores, imagens e sensações que haviam deixado um gosto bom na boca.

Algo com um pouco do bolinho de bacalhau do Capela, da empada do Salete, e da generosa porção de camarão frito do Mercado São Pedro. Original geladíssima ao lado.

Todos os gostos num só. Uma espécie rara de Picadinho à carioca, imaginei.

Talvez por isso, já escuro, tenha recusado o sanduíche ordinário e pretensioso geralmente servido na ponte aérea (oferecido pela aeromoça loirinha do sorriso cativante):

- Senhor, aceita um sanduíche? Hoje temos croissant de provolone com ervas aromáticas e rúcula sobre o leito de Philadélfia.

Era óbvio que já sobrevoávamos São Paulo.

Nem no céu, entre nuvens coloridas e querubins de cavaquinho, nos deixam sonhar.

Em vinte minutos, talvez um pouco mais, eu e Congonhas nos encontraríamos como em tantas outras vezes.

Naquela oportunidade, porém, seria do meu jeito. Sem maiores concessões e com o bilhete de retorno cuidadosamente dobrado dentro do bolso da camisa.
Gustaalbuquerque
Enviado por Gustaalbuquerque em 26/11/2008
Código do texto: T1304081
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