VENDEDOR DE PICOLÉ

Era a maior das delícias aquele sorvetinho de coco. O vendedor carregava no ombro uma espécie de tambor azul de céu com tampa branca, meio comprido. As moedas guardadas esperando ele surgir na rua, tocando a sineta e gritando Olhe o sorvete, olhe o sorvete! Custava cinquenta centavos, moeda de personalidade. Mude o que mudar, centavo é centavo.

Lambida para lá, lambida para cá, o sorvetinho ia sumindo vagarosamente, às vezes derramando um pouco até chegar à casca. O melhor era aquela casquinha branca como a neve. Não se sabia do que era feita, mas o gosto era divino. Desapareceram o sorveteiro e o sorvete. Ficou o gosto na boca.

Mas esta deixa do sorveteiro serve para contar uma passagem que ocorreu com um ex-aluno do Ensino Médio noturno, um aluno trabalhador.

Entre a leitura e interpretação de textos e as noções de regras gramaticais, sempre achei brecha para inserir ética, moral, etc.

Um dia me chega o aluno, um pouco atrasado, como sempre acontece com esses estudantes que trabalham longos expedientes, e me diz:

Professora, lembrei-me muito da senhora. Desci, há pouco, de um coletivo superlotado. Estava apressado para chegar aqui. O terminal parecia um formigueiro. Vinha, no meio de toda aquela gente, um rapaz com um carrinho de picolés. Vi que íamos colidir um no outro. Tudo foi muito rápido, pensamento e ação. Eu estou cansado, mas ele também está. Eu estou atrasado e ele nem sei a que horas voltará para casa, se tem casa. Sou privilegiado perante ele. Venho de um escritório. Ele levou o dia todo vendendo picolés para ganhar quase nada por cada um. E provavelmente o almoço dele foi um picolé. Eu comi uma quentinha que estava um pouco fria, mas deu para enganar. Vou deixá-lo seguir. Fiz um gesto delicado, abanando o braço, mostrando que poderia passar. E ele parado. A senhora me disse para sermos sempre educados. Ele me mandou ir, uma mão segurando o carrinho e a outra mostrando o espaço vazio. Ficamos assim, um esperando pelo outro. Disse a ele que poderia passar e ele me dizia o mesmo. Foram várias vezes até que ele perdeu a paciência e disse bem alto: Passe, porraaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!

Tá vendo, professora, educação demais também não é bom.