Até que o Alzheimer vos separe...

Era um ano da década de 50. Eles eram estranhos naquela grande cidade. Ela havia vindo do Sul do País, e ele de uma pequena cidade, quase desconhecida, do interior de Minas Gerais. Como em uma grande peça teatral, em que os personagens se cruzam por acaso, eles foram morar no mesmo bairro e conheceram pessoas que se tornaram amigos comuns dos dois. Sendo assim, eles foram apresentados e ai começou a grande história... de antipatia mútua.

Ela o achava convencido, arrogante e, acima de tudo, pouco confiável.

Ele, por sua vez, não achava graça naquela mulher de dezessete anos teimando em ser criança, brincando na rua, de pés descalços, livre como um menino. Sim, naquela época, liberdade era virtude e direito masculino.

Algum tempo foi necessário para que os dois começassem a se perceber de outra forma e, como era de se esperar, a antipatia virou um grande amor, seguido de muita atração e vontade de estar junto. Namoraram durante dois anos aproximadamente, enfrentando oposição das duas familias, que eram muito diferentes, com costumes nada compatíveis. O amor e, por que não dizer, a teimosia dos dois, imperou e acabaram ou melhor, começaram, casando.Digo começaram pois a história dos dois foi escrita de forma impetuosa, cheia de obstáculos. Cada momento de amor era acompanhado de grande dose de sofrimento. As adversidades eram vencidas pouco a pouco, mas eles estavam sempre juntos. Houve muito o que aceitar. Muitas vezes tiveram de ceder, cada um a seu tempo, mas o desejo de estar juntos, o amor que os unia, e a familia que se formava ,cada filho que chegava, era um motivo a mais para prosseguir.O amor foi amadurecendo, o ciúme, demasiado, de ambos, foi também sendo controlado, sim, porque não acabara de todo, mas já não provocava tanta briga e discussão. Os filhos foram crescendo, os problemas sempre sendo superados com a união de todos. As crises financeiras, os problemas de saúde, as várias etapas de crescimento dos filhos, novos rumos que eles tomavam, tudo era enfrentado por eles, que estavam sempre ligados, mesmo que muitas vezes divergindo. Era a diversidade aprendendo a conviver para crescer.Ali estava uma união de corpos ,alma e espírito. Parecia realmente uma história perfeitamente humana, abençoada pelo Divino em que ambos acreditavam. Até que veio aquela notícia, que caiu como uma traição para todos. Traição da vida, do acaso, do destino e, por que não dizer, do Deus em que acreditavam. Tudo que fora construído estava ameçado. Não por outra mulher ou outro homem. Não pela morte física ou pelo adeus definitivo. A bela história dos dois estava ameaçada por um mal silencioso, que aos poucos ia tirando dos dois a marca , o cheiro, o olhar carregado de símbolos, de ternura, de cumplicidade, conquistados por uma vida inteira. O que ninguém conseguira fazer até aquele momento, depois de tantos anos, aquela maldita doença estava fazendo. Aquele chefe de familia, aquele homem seguro, que sempre soubera o que fazer em momentos dolorosos, que tinha uma palavra certa ou o silêncio bem colocado em momentos cruciais, estava sendo cruelmente roubado, assim como todos nós. O mal de Alzheimer, tão distante das nossas vidas, estava ali, afastando, sem qualquer pudor, nosso pai de nossas vidas. E então começamos a aprender, ou pelo menos, aceitar, já que não havia outra saída, ter que dizer Adeus paulatinamente, até o Adeus definitivo...