Amálgama e garatuja (ou, E aí? Qual é sua opinião?)



- O senhor tem um real que é pra eu comer alguma coisa? Serve qualquer moedinha...

Discutir valores com quer que seja é assumir um risco que deve ser muito bem mensurado. Meu conselho é sempre o mesmo: não o faça. Nunca, nem sob a pior das torturas. Não vale a pena. 

Até porque o que não falta é assunto para ser discutido.

Optem pelo futebol, pelos posicionamentos políticos. Se estiverem num dia inspirado tentem a religião. Não tem problema algum. Esse papo furado de que não se discute certos assuntos é um dos mais lamentáveis conceitos urbanos difundidos sei lá eu por quem.

Tirem o futebol do povo, nos deixem sem o poder de achincalhar os mesmos políticos que nós mesmos colocamos nas assembléias Brasil afora, nos afastem de nossas crenças religiosas! Vamos! Façam isso e teremos uma recessão econômica cujo fato gerador será certamente a quebra de todas as cervejarias instaladas no país. Problemaço.

A mente doentia que idealizou que não se discute política, religião e futebol, jamais bebeu uma gota de álcool com os amigos num bom botequim. É pior: jamais freqüentou um bom botequim e provavelmente nunca gozou da amizade de alguém. Se é que já gozou...

Visto a camisa dos que acham que tudo deve ser discutido. De preferência sem qualquer conhecimento sobre o tema. Ainda bem que essa é a parte fácil.
E tome cerveja...

Parem em qualquer bar, por mais modorrento que ele seja. Vão sozinhos. Encostem numa pilastra ou peçam uma mesa, tanto faz. Bebam uma Bhrama qualquer e deixem seus ouvidos fazerem o resto. O imaginário criativo do brasileiro é um manancial infinito de opiniões. Opinam sobre qualquer coisa e defendem pontos de vista incompatíveis com qualquer lógica rudimentar. O negócio é opinar. Uma beleza.

Olhem, pode parecer pernóstico de minha parte, mas arrisco dizer que é mais fácil escutar “amálgama” ou “garatuja” do que “não tenho opinião formada sobre isso”.

Vitória do Barack Obama? Atualmente - na minha última contagem - há sete democratas para cada republicano nos botequins cariocas. Crise na economia mundial? Já escutei de tudo, de compra de lata de leite em pó para racionamento de comida à teoria de que tudo não passa de um lobby dos bancos europeus para pressionarem os americanos a baixarem os juros reais (?!). Vida em outros planetas? Outro dia no Bracarense um senhor com seus – vá lá – cinqüenta, cinqüenta e poucos, falava (alto!) que as evidências eram categóricas de que a civilização maia (e parte dos egípcios) veio de um planeta semelhante ao nosso que explodiu em função de uma guerra nuclear.

Quase pedi um aparte. Fiquei intrigado com duas coisas. O que poderia ser considerada uma evidência categórica num caso como esse? Parte da nave mãe? Fotografia de cinco megapixels de toda a família alienígena rezando em volta da mesa?
Acho que estou muito severo com o conceito de evidência categórica. Mas o que me dizem de “parte dos egípcios”? Pô.

Acho que só não interrompi – indignado que estava – porque na mesa ao lado iniciaram um papo que me pareceu interessante sobre o ciclo de vida dos mosquitos. Eram dois advogados, ambos com posicionamentos distintos sobre o tema. Fiquei com a ‘certeza’ do cara de camiseta vermelha. Acho que me passou mais veemência.

- Quinze dias!

Aliás, veemência é sempre um fator preponderante nessas conferências dos ‘opinadores’. Volta e meia aparece alguém mais incisivo, determinado. Têm uns que capricham no olhar astuto e sem maiores digressões são capazes de pôr uma pá de cal nas discussões. São as autoridades.

- As cobras venenosas só inoculam veneno se a presa ficar com os músculos flácidos, senão, não! (Beco das Sardinhas, Rio de Janeiro, 19/11/08).

E vocês, achando que só a pancadaria poderia resolver um negócio desses, fazem o quê? Fazem nada. Apenas pedem a saideira, é óbvio, enquanto assistem ao assunto sair da cobra coral pro campeonato brasileiro. Naturalmente o papo sempre volta pro campeonato brasileiro, ou pro PMDB, ou ainda pra Igreja Universal.

Tudo é muito natural pro brasileiro. É uma benção poder viver por aqui.

Só não discutam valores. Não podemos discutir valores. Aprendi isso hoje cedo no sinal da Macedo Sobrinho ao lado do Hospital São José, no Humaitá.

- O senhor tem um real que é pra eu comer alguma coisa? Serve qualquer moedinha...
- Não, irmão, ta brabo, to sem trocado.
- Ta sem trocado? Peraí. Um minutinho só. Aqui, ó. Toma essa moedinha. Eu sei o como é ruim ficar sem. Tá tranquilo, hoje até que tá um dia bom pra mim.

Meu dia acabava ali, nas mãos daquele moleque, antes das oito da manhã.


Gustaalbuquerque
Enviado por Gustaalbuquerque em 02/12/2008
Código do texto: T1315322
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