Amor e posse

A contradição entre amor e posse representa importante e sutil partícula no imenso gênero das contradições humanas. Tão sutil é a diferença que os amantes quase nunca sabem separá-los. No sentido psicológico, amor implica se querer muito a alguém ou a alguma causa, buscando-se sempre o bem-estar desse alguém ou a frutificação e crescimento dessa causa. Trocando em miúdos, o amor estaria próximo, de mãos dadas, com o bem estar da vida, a construtividade e o altruísmo.

A posse é diferente. Trata-se do sentimento de manter o outro ou a causa para si, mais em função da satisfação própria no desejo de poder, custe o que custar. Estaria, mais interligada, a posse, ao aniquilamento do outro, ao narcisismo e egoísmo. Convenhamos que a linha divisória não é tão simples assim, pois amor e ódio, amor e posse, vida e morte, razão e des-razão, amor e paixão, estão por vezes ou quase sempre tão próximos quanto a cara e coroa de uma moeda. A história pessoal de cada homem é a síntese desse anverso, a somatória da luta permanente e dialética entre sentimentos opostos. No campo pessoal do amor, o amante se doa ao amado ou à causa que ama, deixando pequeno espaço para a perda. Não que se queira perder o objeto de amor, mas se tal acontecer, apesar do sofrimento, a representação de si e do outro não será totalmente destruída. Deixe-se um espaço para desejar o bem-estar do objeto de amor perdido e, por conseguinte, amante e amado, sairão da frustrada relação amorosa sem grandes danos.

Na posse, ao contrário, não sobra área afetiva para nada: o estado de paixão monopoliza a consciência dos amantes, isolando-os do mundo. Satisfaz-se mais ao egoísmo e à vaidade, ignorando-se o bem-estar do objeto de amor. O importante, aqui, é a fome devoradora para satisfação própria. Não se divide refeição entre dois possessivos. E se os dois parceiros estão com altos estímulos apetitosos de afeto, o fim da relação será um intenso ódio.

A Bíblia, os pensadores e a própria história trazem-nos mais preciosidade, nesse assunto. Alguém já disse que a prova evidente do fato de amor e ódio andarem tão juntos dá-se quando o Novo Testamento ensina "Amai vosso inimigo" e o Antigo Testamento solicita "que se ame o estrangeiro". No gênio de Albert Camus identificamos a luta do homem para superar o amor exacerbado por si: o narcisismo. Na obra "A Queda”, temos a impressão de que amamos a nós, projetando sentimentos de carência nos demais. As situações do dia-a-dia se sucedem às nossas vistas sem que as percebamos, tão voltados estamos para dentro dos próprios interesses. Diversos episódios negativos da vida acontecem por total descaso e não-participação dos seres viventes, egoísticos e narcíseos.

Pelo desinteresse para com os outros, por amarmos possessivamente a nós mesmos, terminamos por nos auto-destruir. É um paradoxo da existência. Francis Bacon afirmava que os seres tinham duas qualidades: o instinto individualista e o social. Este seria mais nobre, superior, geral. Tal idéia, um tanto ingênua e romântica, seria bem traduzida na Psiquiatria da Análise Existencial, de Ludwig Biswanger, quando conclui ser o Homem não somente um Ser-no-Mundo (como em Heidegger), mas um Ser-Mais-Além-do-Mundo, ou seja, um ser com capacidade de amar. Mais ainda, para Biswanger, muitos transtornos psíquicos se devem à incapacidade de alguns em amar, de saírem de si, de se doarem. Daí insistimos: resguardemos algum espaço para perda afetiva. Caso contrário não haverá ressurreição.

A desigualdade, a diversidade de duas personalidades que se amam envolve a arte de caminhar entre cristais, mexer com bibelôs e biscuís, sempre com meticuloso zelo e atenção para que nada se quebre. Afinal, se somos todos neuróticos – mínimos ou máximos – a questão fundamental é a posologia adequada entre o amor e a posse.

Maurilton Morais
Enviado por Maurilton Morais em 31/03/2006
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