O rufião, os pombos e eu
Confesso que desta vez não entendi porra nenhuma. E olhem que estou me esforçando para buscar ao menos algum entendimento sobre o cotidiano cada vez mais esquisito ao qual inexoravelmente somos submetidos.
Sim, somos. Todos nós. Do Governador ao moribundo que conta carneirinhos olhando para o teto de um quarto de hospital. Políticos e enfermeiras, sindicalistas e doutores, jornalistas e mendigos. Todos.
Diante de mim e a dez metros do Odeon, na Cinelândia, cidade maravilhosa, num banco de madeira pintado de verde, a representação mais incrível, arrebatadora e surpreendente do que somos quando libertos de nossos medos.
Passava um senhor distinto, terno bem cortado em tecido azul-marinho de qualidade. Ao seu lado, já sobre o banco, Ele, assim mesmo com maiúsculas, plenamente justificadas a seguir
- Dá um dinheiro aí, seu velho safado!
Prosseguiria:
- Velho safado! Seu pastor de merda! Devolve o meu dinheiro seu rufião! Você é um ladrão safado, seu pastor de merda!
O ‘pastor’, assustadíssimo, fez que apressaria o passo, mas travou ao ver que Ele não iria desistir de forma tão tola.
- O quê você quer? Já falei que não tem acerto com você. Pode me seguir até no inferno (N. do Privilegiado Espectador: o termo utilizado foi exatamente esse) que eu não vou devolver dinheiro algum. Deu porque quis. Não quisesse, não dava!
- Tu é um pastorzinho mesmo, né? Ladrão! Pastor ladrão! Ministério de ladrão! Rouba dinheiro dos pobres pra comprar carro novo e pegar as menininhas, não é? Eu ainda te desmascaro, seu rufião (N. do P.E: Já havia lido o termo rufião, jamais ouvido)! Eu ainda te desmascaro, seu hipócrita!
Não entendia como quase todas as pessoas passavam a metros da discussão e não paravam sequer para ver qual dos dois era o tal do rufião. Isso me entristeceu demais. O que poderia ser mais importante? Banco? Encontro com a amante? O horário do trem? Francamente... Como tenho compromisso com meu sono tranquilo, com meus valores, obviamente parei para ‘pegar’ o desfecho. Afinal não poderia durar muito mais tempo. Não sem que ambos – maluco e rufião – se engalfinhassem no chão de pedras portuguesas do centro carioca.
- Já falei, irmão! Deu, ta dado! O dinheiro agora vai pra obra.
- Vai pra obra? Vai pra obra! É, vai pra obra! Vai pra obra da sua casa, né seu safado? Pensa que eu não sei? Pedóóóóólatra (N. do P.E.: temo que não tenha sido essa a intenção)! Pensa que eu não sei como você olha pras menininhas? Safado! Velho safado!
Não tinha mesmo jeito. Não havia diálogo. O maluco estava ensandecido. A única opção voltara a ser a que o instinto lhe aconselhara segundos antes.
Foi pouco, o maluco era mais rápido. Muito mais rápido.
Pulou do banco (estava de pé) e com duas largas passadas estilo João do Pulo acertou em cheio as nádegas do velho, que caiu.
Caiu e emendou (ignorando solenemente a Cinelândia que lhe cercava e iluminava sua face com o sol das dezesseis horas):
- Chega! Quanto você quer pra me deixar em paz? Chega!
Ao que Ele respondeu com ares de vencedor da peleja:
- Duzentos, você sabe.
- Toma - respondeu o homem de terno azul amassado e já sujo com a poeira clara do pós chuva - toma cem, que é o que tenho aqui. Amanhã passa lá que eu te dou o resto. Agora! Pelo amor de Deus, vê se me esquece e esquece toda essa história. Toma.
Ele pegou o dinheiro, não falou mais nada, não alterou sua face, não ruborizou as bochechas, e, como não aparentava ter carteira, colocou as duas notas de cinqüenta entre a barriga protuberante e o elástico do ‘short’ preto que vestia.
Saiu andando.
Aliás, saíram andando. O maluco, o rufião e não mais do que três ou quatro curiosos que se dignaram a parar.
No quarteirão seguinte, fosse a madame de vestido estampado, fosse o desmbargador aposentado, fosse o lavador de carros com a flanela imunda sobre os ombros, ninguém que encontrasse com o maluco ou com o rufião saberia de nada, nadinha.
Isso me angustiou. Não saberia dizer a razão.
E quando me vi... Ainda estava lá. Eu havia ficado. Imóvel, atordoado.
Comigo ficaram apenas os pombos de sempre e a correria inócua dos que buscam algo sem importância no meio de prédios e carros.
- Desfizeram a cena toda, lamentei.
Lembrei-me do chato trabalho das camareiras de motel. Tem lógica a lembrança.
O que não tem a menor lógica é o letreiro do Cine Odeon, ainda visível para quem quiser ver nesta tarde de quarta-feira: Mostra Kielowski: A Liberdade é Azul.
Confesso que desta vez não entendi porra nenhuma. E olhem que estou me esforçando para buscar ao menos algum entendimento sobre o cotidiano cada vez mais esquisito ao qual inexoravelmente somos submetidos.
Sim, somos. Todos nós. Do Governador ao moribundo que conta carneirinhos olhando para o teto de um quarto de hospital. Políticos e enfermeiras, sindicalistas e doutores, jornalistas e mendigos. Todos.
Diante de mim e a dez metros do Odeon, na Cinelândia, cidade maravilhosa, num banco de madeira pintado de verde, a representação mais incrível, arrebatadora e surpreendente do que somos quando libertos de nossos medos.
Passava um senhor distinto, terno bem cortado em tecido azul-marinho de qualidade. Ao seu lado, já sobre o banco, Ele, assim mesmo com maiúsculas, plenamente justificadas a seguir
- Dá um dinheiro aí, seu velho safado!
Prosseguiria:
- Velho safado! Seu pastor de merda! Devolve o meu dinheiro seu rufião! Você é um ladrão safado, seu pastor de merda!
O ‘pastor’, assustadíssimo, fez que apressaria o passo, mas travou ao ver que Ele não iria desistir de forma tão tola.
- O quê você quer? Já falei que não tem acerto com você. Pode me seguir até no inferno (N. do Privilegiado Espectador: o termo utilizado foi exatamente esse) que eu não vou devolver dinheiro algum. Deu porque quis. Não quisesse, não dava!
- Tu é um pastorzinho mesmo, né? Ladrão! Pastor ladrão! Ministério de ladrão! Rouba dinheiro dos pobres pra comprar carro novo e pegar as menininhas, não é? Eu ainda te desmascaro, seu rufião (N. do P.E: Já havia lido o termo rufião, jamais ouvido)! Eu ainda te desmascaro, seu hipócrita!
Não entendia como quase todas as pessoas passavam a metros da discussão e não paravam sequer para ver qual dos dois era o tal do rufião. Isso me entristeceu demais. O que poderia ser mais importante? Banco? Encontro com a amante? O horário do trem? Francamente... Como tenho compromisso com meu sono tranquilo, com meus valores, obviamente parei para ‘pegar’ o desfecho. Afinal não poderia durar muito mais tempo. Não sem que ambos – maluco e rufião – se engalfinhassem no chão de pedras portuguesas do centro carioca.
- Já falei, irmão! Deu, ta dado! O dinheiro agora vai pra obra.
- Vai pra obra? Vai pra obra! É, vai pra obra! Vai pra obra da sua casa, né seu safado? Pensa que eu não sei? Pedóóóóólatra (N. do P.E.: temo que não tenha sido essa a intenção)! Pensa que eu não sei como você olha pras menininhas? Safado! Velho safado!
Não tinha mesmo jeito. Não havia diálogo. O maluco estava ensandecido. A única opção voltara a ser a que o instinto lhe aconselhara segundos antes.
Foi pouco, o maluco era mais rápido. Muito mais rápido.
Pulou do banco (estava de pé) e com duas largas passadas estilo João do Pulo acertou em cheio as nádegas do velho, que caiu.
Caiu e emendou (ignorando solenemente a Cinelândia que lhe cercava e iluminava sua face com o sol das dezesseis horas):
- Chega! Quanto você quer pra me deixar em paz? Chega!
Ao que Ele respondeu com ares de vencedor da peleja:
- Duzentos, você sabe.
- Toma - respondeu o homem de terno azul amassado e já sujo com a poeira clara do pós chuva - toma cem, que é o que tenho aqui. Amanhã passa lá que eu te dou o resto. Agora! Pelo amor de Deus, vê se me esquece e esquece toda essa história. Toma.
Ele pegou o dinheiro, não falou mais nada, não alterou sua face, não ruborizou as bochechas, e, como não aparentava ter carteira, colocou as duas notas de cinqüenta entre a barriga protuberante e o elástico do ‘short’ preto que vestia.
Saiu andando.
Aliás, saíram andando. O maluco, o rufião e não mais do que três ou quatro curiosos que se dignaram a parar.
No quarteirão seguinte, fosse a madame de vestido estampado, fosse o desmbargador aposentado, fosse o lavador de carros com a flanela imunda sobre os ombros, ninguém que encontrasse com o maluco ou com o rufião saberia de nada, nadinha.
Isso me angustiou. Não saberia dizer a razão.
E quando me vi... Ainda estava lá. Eu havia ficado. Imóvel, atordoado.
Comigo ficaram apenas os pombos de sempre e a correria inócua dos que buscam algo sem importância no meio de prédios e carros.
- Desfizeram a cena toda, lamentei.
Lembrei-me do chato trabalho das camareiras de motel. Tem lógica a lembrança.
O que não tem a menor lógica é o letreiro do Cine Odeon, ainda visível para quem quiser ver nesta tarde de quarta-feira: Mostra Kielowski: A Liberdade é Azul.