Eles sabem quem foi

“Morreram abraçadas, aí enterrei as duas no mesmo caixão”. Flagelado cuja mulher, grávida, foi encontrada abraçada à filha, as duas mortas.

Chegou como detalhe de “Os retirantes”, de Portinari, ou foto de Sebastião Salgado, inspirada em texto de Guimarães Rosa. Lama no lugar de poeira, com o mesmo olhar de desespero e desesperança. Trôpega, apertava a filha como se fosse o único refúgio, a única esperança de salvação. O ventre denunciava que ali, até há pouco, houvera vida ansiando por respirar. Acostumados a receber pessoas feridas, mutiladas, desta vez não souberam o que fazer. Talvez tenha sido o olhar opaco, talvez a imensa tristeza que irradiava.

Chamaram-no e viram que chorara.

Afagou seu enlameado cabelo, beijou sua testa, acarinhou a criança e, sem limpar a lama dos lábios, olhou-as com olhos de amor entristecido.

“Disseram que foi você que mandou”, murmurou ela. Carinhosamente Ele segurou seu queixo e fez com que olhasse para seus olhos. “É sempre assim quando o desamor se instala, filha”, disse com voz pausada, e suas palavras calaram nela e quis escutar mais. “Venha, sente comigo”, pediu Ele.

Como quem conta uma história à bem amada, continuou: “Os homens sempre me usaram, filha, muito mais para o mal do que para o bem. Houve um povo que se escolheu meu e, por conta disso, saqueou, matou, destruiu, tudo em meu nome, dizendo que eu o havia ordenado. Mais tarde me negou no meu amor e foi perseguido, morto, injustiçado, não porque eu o quis, mas por insensatez dos homens. Povos e mais povos se disseram meus e tentaram impor não minha palavra, mas a interpretação deles de minha palavra, e para isso mataram, torturaram, blasfemaram. Em meu nome o fizeram. À ganância chamam de progresso e usam seu maior presente não para gerar vida, mas para alimentar a morte. Cortam, derrubam, destroem e quando a Natureza já não tem força para protegê-los e, cansada, deixa seus elementos fazer justiça à sua maneira, têm coragem de dizer que fui eu que mandei, que castiguei, como se o Universo fosse um imenso Lego para minha diversão. Fica mais fácil para eles, filha, dizer que faço justiça com vingança e destruição, por isso me culpam. Não, filha, não fui eu, não importa que o digam; eles sabem quem foi.”

Chamou um grupo de anjos para dar-lhes banho e cuidar das feridas dos corpos e das almas, deu-lhes novo beijo, sorriu meio desajeitado e saiu cabisbaixo. Ela ainda o viu limpando uma lágrima fortuita e ouviu-o murmurar, enquanto se afastava: “Esses idiotas”.