O poeta d'além poça

Niterói vocês não conhecem, né?

Acho que vale um pulo lá. Merece sim ser visitada. Aliás, qualquer lugar que de alguma forma se avizinhe ao Rio de Janeiro, que se apodere de seu magnetismo, merece ser conhecido e – por que não? - analisado.

A cidade é linda, exuberante, até. Algumas ruas nos remetem a um passado com gosto de sacolé e, com sorte, se de ouvidos atentos, podemos escutar vassoureiros e verdureiros à moda antiga, gogós afinados, tentando passar seus produtos que parecem ter saído de algum túnel do tempo. Taí. Talvez o grande problema de Niterói seja esse, o túnel do tempo.

O Niteroiense é diferente. É possível reconhecê-lo numa ida à Meca, num cruzeiro no Caribe e até mesmo num exílio acadêmico na Ilha de Páscoa. Estará invariavelmente colocando sua cidade no mesmo patamar de Milão, Paris e Barcelona. Isso – o detalhe é importantíssimo – se não estiver falando com outro niteroiense. Quando juntos, abrem a caixa de pandora e a cidade vira um inferno tão grande que nem o melhor dos diabos conseguiria conceber.

Enfim, Niteroienses são de fato diferentes.

Digo isso porque estava num dos seus lugares mais importantes, um boteco que goza de fama inabalável na cidade. Caneco Gelado do Mário. Amigos, confesso: não conheço bolinho de bacalhau mais perfeito. Também pelo sabor, pela textura, mas muito mais pelo que o rodeia: um lugar tumultuado, bagunçado, confuso, caótico. O retrato mais fiel do Brasil num lugar repleto de brasileiros que moram em Mônaco e dormem no Fonseca.

O Fonseca vocês também não conhecem, presumo.

Dá pra conhecer Niterói sem obrigatoriamente passar pelo Fonseca. Ao sair da Ponte, vire à direita.

Não precisa agradecer.

Bem, estou falando tanto de Niterói quando na verdade deveria falar sobre o que vi por lá, no mesmo Caneco Gelado do Mário das paredes delicadamente engorduradas: uma estranha e pitoresca estória sobre um corno.

Isso, um corno.

Acho que já estava na quinta ou sexta garrafa de cerveja e já falava que o Zico havia sido na verdade um produto da ditadura para amainar os ânimos da parcela menos esclarecida da população (uma experiência bem sucedida do ‘Pão e Circo’ no passado brasileiro) e outras conjecturas que, sóbrio, você não repete com medo de que alguém escute.

De soslaio, num puro lance de sorte, olhei pro lado e, ao invés de fixar meus olhos numa sujeira qualquer nos azulejos, mantive visão numa ‘fotografia’ digna de estampar qualquer encarte da Igreja Universal.

Era um senhor. Um senhor na mais exata acepção do termo. Distinto, grisalho, roupas simples e que combinavam em discretos tons de cinza. Mãos espalmadas para o alto, olhar de possessão demoníaca e coluna levemente arcada para trás.

Pouif!

Espalmou as mãos com força, inclinou-se um pouco mais, mexeu a cabeça como quem desaprova e só após cerrar os lábios tomou coragem. Levantou-se sobriamente – havia, se muito, dado três ou quatro goles no ‘rabo de galo’ que descansava a sua frente – e começou o poema que aparentemente havia decorado.

Não sem antes tossir duas tosses bem tossidas e pedir para que todos ouvissem o que chamou de ‘pronunciamento’:

Poema para Zuleika, disse seriamente.

Palavras são apenas palavras
Descansam na ilusão imberbe que nos afugenta e atemoriza
Enquanto ressecam poros e inundam sonhos

Gestos quaisquer que significam e fundem significados e significâncias.
Arestas que dilaceram antes de calar
E calam, como calam...

E o que diria eu, um poeta das insignificâncias?
Perdôo? Aventure-se?
Determinismos não se comportam acaso fixos
Letras só se valem se acabadas

Palavras são apenas palavras
Turbilhonam na certeza que nos turva e arrefece
Ou, o que diria eu, um poeta das insignificâncias...
Deite-se, querida, deite-se.


Alguns aplausos e muitas gargalhadas amigáveis como de fato sugeria o ambiente envolto em óleo de soja aquecido ao limite. Esse foi o ‘pós-parto’.

Até então eu não sabia o que dizer. Minto, minto descaradamente. Não diria nada. Dizer o quê? Talvez, quando muito fizesse um gesto com o braço direito e um solidário levantar de sobrancelhas. Na verdade eu não sabia direito era o que pensar.

Aí, meus caros, a Zuleika levantou.

Última mesa, abaixo de um quadro com a gravura já ‘chamuscada’ de tanta fritura que remetia os comensais a Ilha da Madeira.

Levantou-se decidida e decidida puxou seu acompanhante que trajava portentosa sandália, bermuda jeans e camiseta branca com furinhos laterais. O cara parecia boa praça, taxista, eu apostaria.

Sob os olhares de metade do boteco (a outra metade não aparentou gostar de poesia) dirigiu-se à mesa do grisalho senhor e, cuidando para a bolsa exageradamente vermelha não cair-lhe do ombro, emendou, assim, ‘de primeira’:

- Otacílio, pelo amor de Deus, Otacílio, porra, Otacílio. Você não vai parar com isso nunca? Já são seis anos, Otacílio! SEIS ANOS! Vá pentear macaco!

O poeta, macambúzio, macambuzinho mesmo, ao ver a estufada Zuleika driblar as mesas pra ganhar o centro de Niterói, num rompante concretista, soltou a segunda poesia da noite, essa, desculpem-me os líricos de lança embainhada, infinitamente melhor. Só eu (um prêmio?), insistente que sou, peguei seu teor escancarado no canto da boca que não sorvia o resto do ‘rabo de galo’:

Merda
Imunda
Bunda do caralho
Corno vê se aprende
Dói
Dói porra, dói
Dói porra, dói
Dói porra dói

Faltou Niterói, pensei. Faltou Niterói!

Nunca estou satisfeito.
Gustaalbuquerque
Enviado por Gustaalbuquerque em 09/12/2008
Reeditado em 16/03/2010
Código do texto: T1327063
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