DESTILANDO VENENO

O meu estimado leitor há de concordar comigo que na vida poucas são as coisas que escolhemos. Às vezes conseguimos escolher, por exemplo, nossa profissão, nosso cônjuge, o lugar onde morar, os lazeres que iremos desfrutar, os programas de TV... Outras vezes a vida nos impõe estas coisas e não nos pergunta se é ou não de nosso agrado.

O leitor também concordará comigo que em muitos aspectos não há sequer uma chance de que escolhamos algo. Dentre estas coisas estão por exemplo nossos pais. Chego a acreditar por alguns instantes no determinismo quando penso que neste assunto não temos poder de escolha. Não seria muito melhor nós mesmos escolher nossos genitores? Quantos problemas não seriam evitados? E os filhos? Não poderíamos escolher quais seriam os atributos que desejamos que estes possuam?

Então a realidade chega sorrateira até mim e diz: “Deixe de fantasias, tolo! Por que conjeturar sobre coisas impossíveis? Resigna-te e segue teu caminho.”

Depois destas considerações e desta advertência da realidade, sigo o seu conselho. E começo dizendo que o que me levou ao teclado foi exatamente o que eu em minhas fantasias comecei a pensar. Dentre as coisas que não escolhemos estão os vizinhos. Os vizinhos estão ali, sempre ao seu lado, fisicamente falando.

Observar o comportamento da vizinhança é uma arte. Arte que com o tempo fica cada vez mais refinada. Você, depois de algum tempo fica conhecendo todas as manias e esquisitices das pessoas que são afortunadas por morarem perto de sua casa.

Ora, manias e esquisitices. Vamos falar um pouco sobre elas:

A família que mora imediatamente ao lado de minha casa tenta passar uma imagem de serenidade e centramento. Quase sempre discretos. Poucos gritos, quase nenhum palavrão, escassas brigas e pouca interferência na vida alheia.

Alguns eventos destoam desta aparente tranqüilidade.

Todos os dias, próximo das 23h00, o caçula da casa chega da universidade. Futuro bacharel, menino educado e pretensamente inteligente. É notável o horário que ele chega, pois liga o computador e começa a fazer aquele barulhinho chato do MSN. Óbvio que o moleque deve ter algum dever da universidade para ser feito, mas este prioriza os edificantes diálogos travados entre adolescentes no MSN.

Também é possível notar sua chegada pela sua implacável perseguição à sua cadela filhote. Invariavelmente, consigo ouvir seus gritos, suas broncas e o barulho das coisas que atira no pobre animal.

“- Vá deita! Saia daqui, desgraçada”.

E os chinelos e pedaços de pau começam a voar, a ter um uso alternativo. Não sou nenhum defensor ferrenho dos animais, também dou alguns pontapés no meu cãozinho, mas procuro fazer de maneira discreta, sem muito alarde.

Pessoa muito mais pitoresca é a mãe do nosso futuro bacharel. Uma senhora de formas arredondadas (bem arredondadas) que adora dar conselhos. A tal senhora cursou 1 (um) semestre do curso de psicologia e já escreve tratados sobre esta ciência. Sempre gosta de dizer como temos que levar a vida, de nos mostrar a maneira mais equilibrada de se entender as coisas, enfim uma grande conselheira. Nunca pedi conselho algum, mas se ela os dá e ainda sem cobrar por isso, que mal há?

Quando tentamos estabelecer algum diálogo com ela, esta invariavelmente responde a tudo:

“-Eu sei, eu sei. Ah, isso eu sei”.

Vou dizer o quê? A mulher é escolada no assunto vida.

Certa vez, ela me disse que às vezes conversava com Deus. É leitor, você leu direito, ela disse que conversava cara a cara com o arquiteto do universo. Eu ficava pensando que uma visita tão ilustre passou aqui por perto e nem veio até minha casa para tomarmos um café. Vou dizer a ela para que ela diga a ele que tenho uma máquina de café expresso e o pó que utilizo é de boa qualidade, que paguei 30 paus no quilo! Quem sabe ele não cria coragem e me visita também?

Mas apesar de minha vila ter estes aspectos tão grandiosos, como a visita de personalidades intergalácticas, também têm suas pequenezas. Fora a distinção da família imediatamente ao lado, há uma profusão da mais degenerada gentalha.

Gente que adora discussão às 03h00 da madrugada, que vivem pedindo um sem-número de alimentos e utilidades domésticas. Seus filhos estão entre os mais mal-educados e faladores de palavrões do bairro. Minha filha não pode brincar um minuto com a filha deles que esta já começa a brigar e xingar. Também é notório o tempo que estão em casa, pois mesmo de uma longa distância é possível ouvir as palavras chulas e de baixo calão proferidas daquelas bocas desdentadas.

Para minha sorte, somente essas duas casas possui estes elementos pitorescos. Afortunado eu sou. Nas outras casas reina a insignificância, não há o que falar dos outros nem para o bem nem para o mal. Afortunado sou eu.

Assim descrevo nesta maravilhosa manhã de dezembro minha maravilhosa vizinhança.

Fruto de refinada observação. Afortunado eu sou, pois não escolhi esta gente tão especial. Mesmo assim fui agraciado com tão belo presente.

Espero que o meu estimado leitor tenha desfrutado esta tão grandiosa crônica. Que tenha despertado a sua antipatia pelos meus vizinhos e angariado votos, pela minha notável simpatia, para que consiga o mais breve possível cair fora deste antro.

Conto com sua torcida.

Frederico Guilherme
Enviado por Frederico Guilherme em 10/12/2008
Reeditado em 10/12/2008
Código do texto: T1327839
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