A crônica perfeita
Então, depois de tantos anos, de tanta tinta, de tanta correção ortográfica, de tanto olhar vazio esperando cenas que jamais vieram; então, depois de tanta coisa, de tanto tempo, de tanto, tanto tempo, enfim, a crônica perfeita.
Reparem! Não há ponto vazio, não há lacuna a ser embolsada. Também não há excessos, desnecessidades. A crônica perfeita é. Intransitivamente. Mas há um ponto em especial na crônica perfeita que precisa ser explicado, esmiuçado melhor. Aliás, é esse o ponto que a faz mais do que uma boa, uma bela, uma fantástica crônica: a crônica perfeita desfaz do tempo, não o considera, o ignora. A crônica perfeita – até agora só fui apresentado a uma, umazinha só – ironiza a morfologia, gargalha de radicais.
Crônica, Chronus. Chronus da mitologia dos gregos. O mesmo que simboliza o desejo insaciável, a fome devoradora da vida. Aí é que fomos enganados. Bem aí. Sempre desconfiei de palavras. A elas atribuo fatia considerável de nossas mazelas. Vejam vocês a ironia, a leve perversidade: vivemos num mundo no qual o domínio das palavras representa quase tudo, quase tudo mesmo. O bom orador, o moço bem articulado que prende sua atenção nos telejornais, a retórica irresistível dos que nos enganam enquanto boquiabertos aceitamos o convite para que entremos conscientemente na porta errada. Quantos venenos já tomamos sorrindo? E quantos gestos mascaramos dentro dos bolsos das calças jeans? Palavras são armas. Sei que não é novidade alguma, mas deixem ao menos que eu coloque mais um nome nesse abaixo-assinado.
O grande culpado, o maior dos ilusionistas, é o codificador, o que olha pro objeto e vaticina: bigorna! Cenoura! Aparador! Couve-de-Bruxelas. Sobre couve-de-bruxelas em especial, só tive coragem de olhar para uma após completar onze anos. Um dia ainda a experimento. De quantos canalhas falo? Não arrisco um palpite. Mas acendo o alerta: cuidado, eles ainda existem.
Dia desses um cretino falava para outro cretino na porta do barbeiro onde corto meu cabelo: “Amigo, padicalizei, morreu”. O outro riu, gargalhou. Ainda cumprimentaram-se. Efusivamente. Eu meio dentro, meio fora do estabelecimento, apurei o passo e pedi: “Tudo bem? Corta bastante, mas cuide para que fique uniforme”. Não me meto com gente estranha. O “padicalizei”, no entanto e infelizmente, me seguiu por quatro dias e quatro noites e me custou alguns reais em cafeína.
Que era um verbo não havia dúvidas... Mas... Padicalizar?
Numa terça, enfim, associei. Padicalizar e morrer foram usados num contexto que passavam uma mesma idéia, um mesmo sentido. “Morreu”, então, era um complemento, uma explicação ao “padicalizei”. Bingo. Padicalizei, meus caros, é o mesmo que jogar a pá-de-cal, dar o tiro de misericórdia. Franzi a testa e deixei o trabalho mais cedo. Tivesse bens que de fato interessassem a mais alguém, teria também feito um belo testamento. Fica pra outra oportunidade. Virão.
Padicalizar, e toda a cretinice que a envolve, é apenas um exemplo de como os codificadores conseguem brincar de fantoches – conosco, conosco! - criando palavras.
Tem a ver sim. Tem, sim! Pelo menos é como penso.
Afinal a boa crônica até pode ficar atrelada ao tempo, ao Chronos. É isso que fazem os cronistas. Mas o erro essencial, o pecado original de todo cronista, é ter que respeitar o tempo, a rudeza de um conceito que associa crônica à cronologia, cronômetro, início, meio e fim. Boa crônica! Nossa, que crônica excelente!
- Quer dizer que “se conheceram, casaram-se e ela o traiu com o garagista”? Nelson Rodrigues é genial! Paulo Coelho? “com a lua em capricórnio, enquanto trilhava o caminho da colina da casa do caralho, casaram sem saber, só saberiam três anos e três noites depois. Havia um garagista. Mas só o entenderemos no próximo livro. Chega. Pra mim ta bom. Rubem Fonseca é bem melhor. Ou não? Casaram-se apaixonados depois que se conheceram numa festa espetacular. Teriam filhos e netos se não fosse o garagista e seu machado mal afiado. O ultimo, vai? Bukowski. Ninguém conheceu ninguém e todo mundo se conheceu ao mesmo tempo. Drogas são como agências matrimoniais. O problema é que o garagista tinha horário pra acordar – iria comprar frutas frescas para a sogra tão logo a feira abrisse – e resolveu dar vazão à saída do gás. Ganhava mal mesmo. Mais um fudido, menos um fudido...
Crônicas, crônicas...
Não consideram Paulo Coelho cronista? Vocês só podem estar de brincadeira.
Não a crônica perfeita. Para considerarem uma crônica perfeita, esqueçam cronistas. Cronistas não conseguem escrever crônicas perfeitas. Observem: a crônica perfeita transcende o tempo porque não se satisfaz, não se enquadra, de própria vontade, no conceito que lhe impuseram. A crônica perfeita ignora pêndulos e ponteiros. Sei que já disse, mas permito-me repetir: a crônica perfeita é.
Convencidos? Espero, sinceramente que não. No entanto, agora que abri o jogo, que descortinei minha pequena descoberta, preciso dar um dado importante sobre a crônica perfeita que vi: ela existe! Vi, com esses dois olhos que tenho. Vi tão logo acordei.
Mais não escrevo. Não saberia.
Aliás, para padicalizar esta crônica – imperfeita que só –, combinemos: ninguém jamais saberá. Ainda não decodificaram a essência de nenhuma delas.
Dica? Bem, dica eu tenho. A crônica perfeita não traz consigo qualquer desejo insaciável e muito menos aparenta ter fome devoradora de vida.
Malditos codificadores.
Então, depois de tantos anos, de tanta tinta, de tanta correção ortográfica, de tanto olhar vazio esperando cenas que jamais vieram; então, depois de tanta coisa, de tanto tempo, de tanto, tanto tempo, enfim, a crônica perfeita.
Reparem! Não há ponto vazio, não há lacuna a ser embolsada. Também não há excessos, desnecessidades. A crônica perfeita é. Intransitivamente. Mas há um ponto em especial na crônica perfeita que precisa ser explicado, esmiuçado melhor. Aliás, é esse o ponto que a faz mais do que uma boa, uma bela, uma fantástica crônica: a crônica perfeita desfaz do tempo, não o considera, o ignora. A crônica perfeita – até agora só fui apresentado a uma, umazinha só – ironiza a morfologia, gargalha de radicais.
Crônica, Chronus. Chronus da mitologia dos gregos. O mesmo que simboliza o desejo insaciável, a fome devoradora da vida. Aí é que fomos enganados. Bem aí. Sempre desconfiei de palavras. A elas atribuo fatia considerável de nossas mazelas. Vejam vocês a ironia, a leve perversidade: vivemos num mundo no qual o domínio das palavras representa quase tudo, quase tudo mesmo. O bom orador, o moço bem articulado que prende sua atenção nos telejornais, a retórica irresistível dos que nos enganam enquanto boquiabertos aceitamos o convite para que entremos conscientemente na porta errada. Quantos venenos já tomamos sorrindo? E quantos gestos mascaramos dentro dos bolsos das calças jeans? Palavras são armas. Sei que não é novidade alguma, mas deixem ao menos que eu coloque mais um nome nesse abaixo-assinado.
O grande culpado, o maior dos ilusionistas, é o codificador, o que olha pro objeto e vaticina: bigorna! Cenoura! Aparador! Couve-de-Bruxelas. Sobre couve-de-bruxelas em especial, só tive coragem de olhar para uma após completar onze anos. Um dia ainda a experimento. De quantos canalhas falo? Não arrisco um palpite. Mas acendo o alerta: cuidado, eles ainda existem.
Dia desses um cretino falava para outro cretino na porta do barbeiro onde corto meu cabelo: “Amigo, padicalizei, morreu”. O outro riu, gargalhou. Ainda cumprimentaram-se. Efusivamente. Eu meio dentro, meio fora do estabelecimento, apurei o passo e pedi: “Tudo bem? Corta bastante, mas cuide para que fique uniforme”. Não me meto com gente estranha. O “padicalizei”, no entanto e infelizmente, me seguiu por quatro dias e quatro noites e me custou alguns reais em cafeína.
Que era um verbo não havia dúvidas... Mas... Padicalizar?
Numa terça, enfim, associei. Padicalizar e morrer foram usados num contexto que passavam uma mesma idéia, um mesmo sentido. “Morreu”, então, era um complemento, uma explicação ao “padicalizei”. Bingo. Padicalizei, meus caros, é o mesmo que jogar a pá-de-cal, dar o tiro de misericórdia. Franzi a testa e deixei o trabalho mais cedo. Tivesse bens que de fato interessassem a mais alguém, teria também feito um belo testamento. Fica pra outra oportunidade. Virão.
Padicalizar, e toda a cretinice que a envolve, é apenas um exemplo de como os codificadores conseguem brincar de fantoches – conosco, conosco! - criando palavras.
Tem a ver sim. Tem, sim! Pelo menos é como penso.
Afinal a boa crônica até pode ficar atrelada ao tempo, ao Chronos. É isso que fazem os cronistas. Mas o erro essencial, o pecado original de todo cronista, é ter que respeitar o tempo, a rudeza de um conceito que associa crônica à cronologia, cronômetro, início, meio e fim. Boa crônica! Nossa, que crônica excelente!
- Quer dizer que “se conheceram, casaram-se e ela o traiu com o garagista”? Nelson Rodrigues é genial! Paulo Coelho? “com a lua em capricórnio, enquanto trilhava o caminho da colina da casa do caralho, casaram sem saber, só saberiam três anos e três noites depois. Havia um garagista. Mas só o entenderemos no próximo livro. Chega. Pra mim ta bom. Rubem Fonseca é bem melhor. Ou não? Casaram-se apaixonados depois que se conheceram numa festa espetacular. Teriam filhos e netos se não fosse o garagista e seu machado mal afiado. O ultimo, vai? Bukowski. Ninguém conheceu ninguém e todo mundo se conheceu ao mesmo tempo. Drogas são como agências matrimoniais. O problema é que o garagista tinha horário pra acordar – iria comprar frutas frescas para a sogra tão logo a feira abrisse – e resolveu dar vazão à saída do gás. Ganhava mal mesmo. Mais um fudido, menos um fudido...
Crônicas, crônicas...
Não consideram Paulo Coelho cronista? Vocês só podem estar de brincadeira.
Não a crônica perfeita. Para considerarem uma crônica perfeita, esqueçam cronistas. Cronistas não conseguem escrever crônicas perfeitas. Observem: a crônica perfeita transcende o tempo porque não se satisfaz, não se enquadra, de própria vontade, no conceito que lhe impuseram. A crônica perfeita ignora pêndulos e ponteiros. Sei que já disse, mas permito-me repetir: a crônica perfeita é.
Convencidos? Espero, sinceramente que não. No entanto, agora que abri o jogo, que descortinei minha pequena descoberta, preciso dar um dado importante sobre a crônica perfeita que vi: ela existe! Vi, com esses dois olhos que tenho. Vi tão logo acordei.
Mais não escrevo. Não saberia.
Aliás, para padicalizar esta crônica – imperfeita que só –, combinemos: ninguém jamais saberá. Ainda não decodificaram a essência de nenhuma delas.
Dica? Bem, dica eu tenho. A crônica perfeita não traz consigo qualquer desejo insaciável e muito menos aparenta ter fome devoradora de vida.
Malditos codificadores.