A pérola e a concha.
Ele abriu a porta do guarda-roupa, do lado onde guardava as roupas mais finas, retirou alguns ternos e os jogou sobre a cama. Experimentou um a um mirando-se no espelho. Nenhum lhe caía bem, os paletós tinham as lapelas muito largas, e as calças as bocas muito estreitas, mas o bege usado uma única vez no casamento do neto mais velho, pareceu-lhe o melhor. Separou também uma camisa branca, meias marrons, para combinar com os sapatos, e a gravata de seda preta pareceu ser a mais adequada.
Chamou a empregada, pediu que colocasse tudo ao ar livre pelo resto do dia e que, depois de escovar, passasse a ferro.
Pronto, a indumentária está pronta, agora só faltava cuidar do corpo e do espírito.
Naquela noite foi para a cama mais cedo, queria estar só com seus pensamentos, sem que nenhum ruído atrapalhasse o encanto de se encontrar consigo.
Havia muito tinha momentos em que se sentia com Deus, momentos mesmo, instantes, frações de segundos, como o clarão de um raio que descortina um mundo desconhecido, como uma porta se abrindo para um mundo novo, distante, e trazendo lembranças agradáveis de vivências que ele não tinha certeza de tê-las vivido.
Havia uma recorrente, que o deixava particularmente encantado e como que o embriagava por todo um dia e às vezes até dois:
Era uma casa não muito grande, mas suntuosa, com duas escadas externas, uma de cada lado. Na do lado esquerdo de quem a olhava de frente, uma jovem mulher vestida com muito pano, sentada com o corpo
inclinado para trás olhando-o com olhos de se dar e com tanta ternura e brilho, que ofuscava os seus. Havia uma simbiose entre eles, e nos lábios carnudos daquela jovem mulher brotava a palavra “amor”.
Na busca dessa recorrência que não se pode exprimir em palavras resume-se a vida desse homem de setenta e oito anos que acaba de receber a notícia da morte da ex-esposa, que lhe deu quatro filhos e uma vida sem sentido.
No dia seguinte, acordou mais cedo que de costume e assustado. Os olhos petrificados se fixaram no teto do quarto. Um choro sofrido de remorso e uma profunda dor fê-lo esmurrar o travesseiro enquanto o peito estalava em um grito forte.
– Não! Não! Não!
Levantou-se claudicante e foi para o banheiro. Sentou-se no vaso sanitário com o rosto entre as mãos e assim ficou por um tempo indefinido.
Ainda a soluçar, arregimentou forças que não sabia que tinha, e diante do espelho fez a barba de dois dias. Tomou um banho demorado. Vestiu-se com a roupa escolhida. Apanhou, na caixinha que deixava sob o
criado-mudo, o relógio. Foi ao oratório e ali ficou em meditação, adquirindo forças e buscando lembranças.
No velório árido, viu quatro flores que o alentaram. Eram os filhos que a ele acorreram. Enlaçado pela ternura foi levado ao caixão e ali ficou imóvel, mas falando em pensamento com a alma da mulher que sentia ali estar.
– Como eu pude deixar de ver, por entre os escombros que nossas vidas criaram, o olhar terno e brilhante que tanto busquei e que estava tão próximo?
– Como o pudeste esconder?
– Qual a pena capaz de redimir crime tão hediondo? Como sofrer o castigo de se sentir burlado por seus sonhos? O que fazer quando se descobre que se foi imperfeito em seus caminhos?
– Amada Júlia! Veja, só hoje posso chamá-la de minha amada sem sentir meus pensamentos deambulando pelos cantos escuros e inóspitos que criamos e que, como o tártaro, fixaram-se em mim.
– Só hoje compreendi por que nunca me empenhei em fazê-la entender que não eras culpada por minha angústia, meu ciúme, minha agonia, embora a origem estivesse em você.
– Só hoje entendi por que tolerei seus vícios, seus devaneios e sua insensatez. Eles eram apenas o tempero da alegria, do desprendimento e da ternura que mantinhas ocultos, e que fizeram germinar a semente
da minha paixão.
– Eu sabia, inconscientemente eu sempre soube, que guardavas dentro de si a outra, como a pérola dentro da concha.
– Agora, minha amada, resta-me a sina de saber que amando uma através da outra, amei as duas e não tive nenhuma.
Do livro “Coisas do Coração” de Carlos Campregher