Recordar é Viver?

Viví oitenta e quatro anos e o que me resta além deste cateter que transporta o meu sustento – pois até o sabor do doce ou salgado foi-me desprovido - é um acumulado de ossos e encarquilhada derme, músculos atrofiados e uma vaga lembrança do que fui.

Posso definir o sentido de minha existência, hoje, numa única palavra: lembranças.

Lembranças de, quando menina, correndo pela lavoura a atrapalhar os grandes na minha inocente balbúrdia, quando moça, a trabalhar na lavoura a semana inteira para ter o direito de desfrutar no máximo de uma hora no salão de baile aos domingos sob os olhos do pai e dos irmãos mais velhos. Finalmente, as mais doces lembranças vêm de, quando mulher, do meu amado, que por cinqüenta e quatro anos dedicou-me a vida, saciou-me os desejos, cercou-me de carinhos e mimos. Há dez anos deixou-me, levando consigo a minha razão de viver.

Tenho, oficialmente, cinco filhos, dezesseis netos, uma dúzia de bisnetos, fora os outros quatro que estão a caminho (se é a que memória não falhou-me) . Digo, oficialmente pois há muitos anos, meus netos não me visitam, exceto os três filhos da minha filha mais nova, que é também, a única mulher entre os cinco.

Estou neste hospital há uma semana, porém, se não pela minha menina, estaria aos cuidados de estranhos, pois dos cinco filhos que parí, amamentei, troquei fraldas, velei o sono nas noites febris, deixei de alimentar-me para sustenta-los, dediquei o meu mais fraterno amor, apenas ela, a mais nova lembra-se e cuida de mim. Os demais devem achar que o meu prazo de validade venceu, pois não tenho mais utilidade alguma, deixaram-me de lado. Eu os entendo, têm seus afazeres certamente.

Jamais deixarei de amar as minhas crianças, por mais que há muito deixaram de ser minhas.

O que corta-me o coração é a expressão cansada da minha amada menina. Acompanha-me com uma dedicação que deixa-me concomitantemente orgulhosa e apreensiva, pois percebo em seus olhos, o quanto lhe é difícil a jornada de, sozinha, carregar-me em suas costas, como um fardo que ela dissimuladamente diz não sentir.

É esse amor dedicado de minha filha que me mantém e faz esses oitenta e quatro anos terem valido à pena.

Deus esteja com ela em sua velhice. Amém.

Catia Schneider
Enviado por Catia Schneider em 05/04/2006
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