Meu jeito de ser nervoso

TEXTO DE KÁSSIA M.

Eu não consigo ser normal. Quando estou em uma situação de perigo, quero dizer. As pessoas comuns choram, ou gritam, ou desmaiam. Mas eu… Eu canto o Hino Nacional.

Sei que parece estranho, mas é o que eu faço. Se levo um susto, já inicio os primeiros versos. Até passei por uma situação constrangedora em meu casamento. Quando chegou a minha vez de dizer o “sim”, o vento derrubou um dos arranjos florais, e eu já estava no estribilho quando minha esposa conseguiu me acalmar.

Escrevo essas palavras por causa de um incidente ocorrido dias atrás. Estava eu em um ônibus lotado, quando um homem suspeito subiu. E eu tinha razão em desconfiar dele. De repente, o indivíduo anunciou o assalto. As pessoas normais, claro, tiveram as reações que eram de se esperar. E eu lá, me controlando para não soltar um “Ouviram do Ipiranga…”.

- Aí, todo mundo pegando relógio, jóia e dinheiro. – disse o assaltante, que vinha passando uma touca vermelha, onde deveríamos depositar nossos pertences.

Eu estava usando um relógio de família. Nenhuma jóia rara, mas algo de que eu realmente gostava. Resolvi que não o entregaria.

- Aí, meu tio – disse o meliante – Pode passar o relógio também.

- Desculpe, mas eu não posso, senhor.

- O que foi que você disse, tiozinho? – ele apontou a arma para a minha cabeça – Passa logo essa porcaria!

- O senhor mesmo disse… É uma porcaria. Por que perder tempo com isso?

- Eu vou te matar, mermão!

- Uhm – não agüentei mais – “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas; de um povo heróico o brado retumbante…”.

- Tá maluco, cumpadi? Passa logo o bagulho!

- “E o sol da liberdade, em raios fúlgidos; brilhou no céu da Pátria nesse instante. Se o penhor, dessa igualdade; conseguimos conquistar com braço forte…”.

Nesse momento, o pessoal do ônibus começou a me acompanhar na cantoria. Eu não entendi nada, e só conseguia continuar cantando:

- “Em teu seio, ó Liberdade; desafia o nosso peito a própria morte!”. – e todos – Ó pátria amada, idolatrada, salve, salve!”.

- Cala a boca todo mundo, se não eu vou atirar, hein! – gritou o bandido – Ó que eu atiro, hein!

- Então atira – disse um homem ao fundo – Atira! Mas a nossa pátria não vai se render a esses atos de vandalismo e bandidagem. Viva o Brasil!

- Viva o Brasil! – responderam todos. E eu: - “Brasil, um sonho intenso, um raio vívido…”

- “De amor e de esperança à terra desce” – gritou o pessoal.

- Fora, bandidagem! – berrou uma moça grávida.

E todos começaram a bater os pés no chão do ônibus, fazendo aquele escândalo.

- Bando de maluco! – disse o assaltante – Abre a porta, motorista, que eu quero descer. Precisava tudo isso por uma arma de brinquedo? É de brinquedo, seus trouxa, é de brinquedo!

O rapaz desceu, deixando nossos pertences jogados no chão do ônibus. Depois que a calma se restabeleceu, fui aclamado como herói. Dei até entrevistas para a imprensa. Fui capa de revista. “O patriota que salvou o dia”, diziam as manchetes. “Salvos pelo Hino Nacional”.

Devem ter achado que fiz aquilo de propósito. Que, em um ato de heroísmo, invoquei a pátria contra a patifaria. Mas não, minha gente, por favor, não é nada disso. Aquilo é só meu jeito de ficar nervoso. Fosse eu uma pessoa normal, e teria, de olhos marejados, ficado sem o meu relógio.

TEXTO DE KÁSSIA M.