"Meus Duros Tempos de Garimpo" =Reminiscências=

Há pouco mais de trinta anos começou a surgir na televisão uma série de notícias sobre o garimpo do ouro no rio que corta Itabira, a cidade onde nasceu Carlos Drummond de Andrade. Gente de todos os cantos do país corria para lá em busca da fortuna e volta e meia víamos na tela uma multidão usando bateias e mexendo água para encontrar o metal precioso que escapava como refugo da grande mineradora da região.

Um dia encontrei um de meus irmãos na casa de meus pais exatamente na hora em que mais uma vez noticiavam aquela corrida ao ouro e perguntei a ele, sem qualquer esperança de que levasse a sério:

- Topa ir até lá garimpar?

- Topo. Quando é que a gente sai?

- Amanhã. Pode ser?

- Com que carro a gente vai? Com o seu ou com o meu?

- O fusquinha está no ponto. Pneus novos e todo revisado.

- E grana?

- Não é muita, mas a gente se vira.

O último grito da moda era relógio digital. Aquela coisinha vagabunda que se comprava na Galeria Pagé a um ou dois cruzeiros e se revendia a 5, a 10 ou mais cruzeiros, dependendo da distância de São Paulo. Investimos na compra de um monte daqueles trequinhos coloridos uns oitenta por cento de nosso parco capital e lá fomos nós de mala e cuia em direção a Itabira, Minas Gerais.

Fusquinha, como todos sabem, é um carro que oferece muito conforto. Mas só para quem não está nem aí para o desconforto e ainda é jovem. Revezando-nos na direção, resolvemos passar primeiro por Belo Horizonte e aproveitar para rever alguns dos parentes, entre as centenas que lá temos (e que estão diminuindo a cada ano, à medida em que aumenta o número de velórios...).

Ao chegar a Itabira fomos imediatamente em direção ao garimpo. A curiosidade, a ansiedade de conhecer o local do ouro em pó, não nos permitiu conhecer antes a cidade. Isso ficaria para depois, caso sobrasse um tempinho.

Ao sair do carro causamos certa sensação e chegamos a julgar que já éramos famosos por ali, mas que nada, eram as nossas modestas roupas a causa dos olhares, sorrisos e risadas: usando casacos de couro, pretos e novos, modestas calças jeans e camisas polo, parecíamos o cúmulo da elegância masculina em comparação com aquela turma coberta de barro e sujeira dos pés à cabeça. Verdadeiros dândis, em comparação com a ralé, digo, com o povão...

Alguns não faziam a menor cerimônia:

- Os donzelos vieram garimpar? Vão se sujar muito e a mamãe vai ficar brava...

- O príncipe aí vai querer uma capa de chuva? O rio é bem molhado e barrento.

Nós dois apenas ríamos e não dizíamos nada. Estávamos, na verdade, sentindo primeiro o ambiente antes de começar a agir.

Aliás, um ambiente que parecia cena de filme americano sobre miséria: famílias inteiras morando dentro de fuscas e com um “puxadinho” de lona, com crianças chorando, brincando, gritando, mulheres bravas xingando Deus e o mundo, barracas vendendo tudo que se pode imaginar e fileiras de carros velhos, caindo aos pedaços, formando verdadeiras ruas automobilísticas.

Quando começamos a agir trocamos bateias de trinta cruzeiros por dois relógios digitais, com o custo total de dois cruzeiros; peneiras de dez cruzeiros por um relógio de um cruzeiro, mas com mais cinco de volta pra nós; e assim fomos adquirindo todo o equipamento necessário para nos encher de ouro.

Que moleza que era garimpar...Bastava ficar com água até a cintura, ou até o pescoço conforme o local, enfiar na água suja a bateia, levantá-la, deixar escorrer boa parte da água, jogar o restante num treco de madeira, comprido, , do qual esqueci o nome e que era em parte coberto por um pano grosseiro, e ficar olhando atentamente para ver se havia algum microscópico pedacinho de ouro ali. Em geral não tinha, mas em compensação chegamos a ver até coco de mosquito recém nascido de tanto que apuramos a visão.

Os veteranos no garimpo eram amáveis e solidários e perguntavam sempre a um de nós:

- Quer uma ajuda aí, príncipe?

- Vai um reforço aí, artista da “Grobo”?

O pessoal era gozador, mas simpático, risonho, e vendo que a gente não se esquentava com as brincadeiras, sentiam-se à vontade para fazê-las e acabamos fazendo ali várias amizades instantâneas que nos traziam os amigos:

- Ô prinspo, eu trôxe mais um pra você enganar com aqueles seus relojo fajuto. É esse meu amigo aqui. Ele qué um bem bunito pra levar pra isposa...

As vendas dos relógios nos garantiram boas refeições. Boas e inesquecíveis comidas mineiras que até hoje dão água na boca à simples menção...

Ao fim do primeiro dia já havíamos recolhido mais ou menos dois miligramas de puro ouro. Naquele ritmo, pagaríamos os custos de nossa viagem em mais ou menos uns cinco anos. Isso se trabalhássemos também à noite e aos domingos e não ficássemos telefonando para nossas casas pedindo e dando notícias.

Em alguns dias remexemos toneladas de areia preta e conseguimos, finalmente, encher de poeira de ouro um minúsculo vidrinho, de uns cinco centímetros de altura por uns três de circunferência, até a boca. Ou melhor, boquinha. Um centímetro e meio de areia por baixo do ouro era só para melhorar o visual. Nada para nos auto-iludirmos.

- Acho que já dá pra pagar a viagem toda...

- E ainda sobra para uns sanduíches na viagem...

Voltamos para São Paulo trazendo um balde grande, cheio de areia preta até a borda. Um dia qualquer, quando sobrasse um tempo, garimparíamos aquela areia e, quem sabe, acharíamos ali uma boa quantidade do tão desejado metal?

Durante anos minha mãe usou aquele balde, pesado, compactado de areia preta, como base para sua árvore de Natal. Até que um dia o jogamos fora sem um exame mais acurado.

- Que se dane se tiver ouro aí. Só por poder contar que em alguma época da vida fomos garimpar, já valeu a pena.

Contaremos aos nossos netos que por um longo período batalhamos contra todas as adversidades em busca do ouro. Que durante uns cinco ou seis dias, inteiros, nos arriscamos a pegar um resfriado enfiados naquele rio até a cintura, batendo a bateia. Não chegou a uma semana porque o estoque de relógios chegou ao fim antes do previsto.

Valeu a pena. Ainda mais quando me lembro do que uma bela mocinha foi capaz de fazer na cama, comigo, em troca de um precioso reloginho vermelho, dos mais finos, que nos custou mais de dois cruzeiros...Coisa fina. Artigo de primeira...Ela ficou encantada.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 20/12/2008
Reeditado em 12/03/2009
Código do texto: T1345730
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