Ninguém

Eu poderia ser tudo na vida: eu poderia fazer trabalho voluntário em prol da humanidade; eu poderia ser um ativista político de esquerda; eu poderia tentar acabar com a fome na africa; eu poderia divertir crianças com leucemia no hospital; eu poderia estar no greenpeace salvando as baleias; eu poderia estar reciclando meu lixo; eu poderia dar um prato de comer para indigentes na rua; eu poderia ser vegetariano; eu poderia ajudar alcoólatras a se estruturarem na vida; eu poderia parar de beber; eu poderia conscientizar as pessoas a parar de fumar; eu poderia parar de fumar; eu poderia parar usar drogas; eu poderia me matar; eu poderia matar outras pessoas; mas não, eu estou aqui escrevendo e não fazendo absolutamente nada, assim como deve ser uma vida: nada.

Suicidar-se, tão fora de moda depois que inventaram a depressão.

Pobre do meu vô: 70 anos com anchada na mão: negro, pobre, honesto e fudido a vida toda. E ainda proíbem ele de “tomar umazinha”.

Sem Dostoievisky, Tolstoi ou Goeth! Existem coisas piores do que se perder entre “matar ou não matar?”, talvez minha vida, talvez sua vida quem sabe.

Diga que sabe Nietzsche! Diga que sabe Marx! Diga que sabe Kant! Mas não, aquele niilismo arrogante “nonsense” de que “agora eu já sei tudo”; a divisão platônica do mundo entre ideal e aparente; a metafísica! A verdade da verdade verdadeira! A divisão social do trabalho! É tudo pela vaidade... a vaidade... vaidade masculina. Macho não chora, macho é forte, macho enfrenta tudo, macho “pega” mulher, macho não tem medo, macho enfrente, macho briga, macho manda, macho é forte, macho é tudo!

Meu vô nasceu em 1928... nasceu em 6 de janeiro de 1928. Permanece analfabeto. Desde dos 8 anos começou a trabalhar, desde de cedo ele já deveria saber o que é ser “homem”.

Em 1936 carpia terrreno e permaneceu carpindo até os 72 anos. Foi plantador de café. Sua vida era mudar de uma cidade a outra à procura de terrenos para carpir. Enquanto isso os gênios literários estavam falando dele, mal sabia que ele que era a vitima do heroísmo. Meu vô era o simbolo da aprovação de escritores consagrados: Guerreiro, forte, negro, trabalhador, BRASILEIRO... pobre vovô, não deram royalites a ele.

Meu vô agora passa despercebido.

Meu vô foi herói na década de 30!

Ele não participou da Revolução de outubro de 1930, não participou do levante constitucionalista de 1932, não fez parte da Ação Integralista Brasileira, nem da Aliança Nacional Libertadora com sua Intentona. É que meu vô não era chegado em política, ele estava trabalhando.

Puta merda vô, a história vibrante passando em seus olhos e você perdendo tempo com trabalho.

Meu vô com 18 anos “robou” minha vô e teve 6 filhos, não teve tempo pra descansar. Só foi trabalho. Isso é tão sem graça, que monótono trabalhar, agora nós temos “happy hour”, temos “baladas”, temos “7 dias e 7 noites em Fernando de Noronha”, temos tv a cabo, terapeutas, psiquiatras, liquidificador, fogão, bigmac, temos a resposta para tudo. Somos uma geração do “tudo sabe”, temos crianças de 6 anos de idade sendo oraculo na tv, crianças do “com quem você pensa que está falando, eu tenho direitos... mãe”. Tsc, tsc, uma geração sem graça. Nem piada funciona mais, agora é “hight tech”, “NOW”, “Let´s go!”, blasé, deprê, facul, mina, manow e mulher melância.

Meu vô olha pra frente, pára, olha e volta pra trás. Ah, que bom era sentar na varadinha da casa do meu vô e ouvir ele contar as suas histórias. Como é bom meu vô, nosso bingo de 5 centavos. Tia Rosa, Cido, e, claro, minha Vô, Nena.

Vó de pai italiano. Hoje é tão charmoso ser italiano, mas na época dela era pai bêbado, mãe apanhando e filho sofrendo. Minha vó é o resumo de todos os traumas dos chamados psicopatas, “Bouderline´s”, equizofrênicos, suicidas e serial killers. Mas não, ela é normal, mais do que eu com minha vida classe média “cool”.

Era para eu ter lido Gilberto Freyre e fazer uma analise, era para ter lido bastante gente, mas eu cansei de ler, cansei de finjir que leio o contrato antes de assinar. Então ao invés de ler as escrituras de outros, vou fazer a minha.

Vejo meu vô em 1935 pegando o trem e desembarcando em São Paulo, ele me contou que era linda “aquela cidade”, as pessoas todas com trajes finos, aquele respeito fingido, bondes, gente magra, e um monte de gritaria que segundo ele: “aquele povo sabido que não falava nada com nada”. E hoje ninguém gosta de “historinhas”, é causa e efeito, “sim” ou “não”, “testado” e “não testado”, Levi-Strauss disse... Marx refletiu... Weber apontou... Durkheim deduziu... Kant mostrou... não sobra espaço para você! Com suas escrituras que não são vistas por ninguém, mas oh: “traga-me o poder, e tudo se faz por si só”.

Meu vô nasceu ninguém, sofreu e vai morrer sofrendo... sendo ninguém. Assim como eu, você, meus escritos, e seus escritos.

Seja ninguém... desfrute do momento em que você não é o centro das atenções.

Mate alguém!

Cometa um crime!

Aproveite!

Plínio Platus
Enviado por Plínio Platus em 22/12/2008
Reeditado em 23/12/2008
Código do texto: T1347806