Cotidiano, fim de tarde, insensibilidade.

Fim de tarde e o aperreio de chegar. Pés, mãos, braços, corpos que se roçam e se repelem, a pele, o tecido social fragilizado. A respiração de cada um é única, os ritmos vários como são vários os olhos desatentos no olhar dos outros e tão tensos a enxergarem o longe, o distante e o horizonte longínquo. Buzina o carro, berra o motorista, apita a moto, esculhamba o motoqueiro, grita o flanelinha, enche a faixa de pedestre e mais um sinal fechado.

Poeira, suor, cansaço, desalento, incertezas, frustrações e mais um grito, mais um grito: "Olha o passe, olha o passe. Fazemos qualquer negócio"... E o negócio era vencer tudo aquilo, o longo percurso com os sapatos apertados, os pés calejados, as pernas doidas, bambas, os músculos gastos para feito sardinha apertada caber dentro daquela lata velha chamada ônibus. Acreditar na sorte de pegar assento, sentar-se, debruçar-se sobre aquela cadeira e deixar o corpo descansar todo o trajeto. Arriscar a sorte de não ter que ir em pé, braço pendurado e outros tantos corpos surrados a tirar proveito da situação.

As pessoas correm, os carros correm, correm as horas e o desalento. O coração corre abatido, preso aos sentimentos de fracasso, de dever não cumprido, de não ter a vida tantas vezes planejada. Mais adiante o pedinte na esquina, mais um pedinte em outra esquina e entre tantos pedintes o grito do homem do picolé e tantas vozes e nenhuma voz é compreendida. O pivete passa a mão na bolsa da idosa, o malandro aproveita a situação e leva a carteira do cidadão de bem e tudo fica, tudo acontece e ninguém para solucionar tais fatos. Humilhação, desentendimento, sentimento de não ser nada, de não poder ser, de não saber ao certo o que fazer.

Do outro lado da pista o corpo desfigurado, o rosto desfigurado a querer comunicar e nenhum sinal naquele momento é compreendido. O sinal é aberto, aberta também é a correria e mais uma batida, mais uma colisão. Aglomeração, curiosos, revoltosos e cada um na sua fala a tentar explicar mais um ocorrido, mais um fato tão corriqueiro que alguns não param, não falam, baixam as cabeças, encolhem os ombros e apressam os passos, sobem calçadas, descem acostamento e até arriscam atravessar a pista sem ter faixa de pedestre. Arriscam a própria vida e vão. Não se perguntam, não querem saber de quem ficou para trás e na travessia da via perdeu a vida, ficou no chão. Deixou de existir.

Mais na frente cai o homem da moto em alta velocidade quando tentava atravessar dois carros de forma imprudente e um corpo estirado no chão em sangue. Choram os olhos, choram as pernas trêmulas, gesticula, gesticula e chama a atenção de vários outros rostos. Um corpo ali estirado e tantos rostos banalizando a cena. O ocorrido não chama mais atenção além de um guarda que liga para o socorro porque o corpo ali o chão impede o bom funcionamento do trânsito naquele sertor. E aquele corpo ali é mais um corpo, mais um anônimo que saiu de casa ma incerteza se voltaria. Seria homem honesto, pai de família? Seria futuro cientista que poderia descobrir a razão da vida? Seria gente, humano, carne e osso merecedor de respeito, dignidade, solidariedade? O corpo caído, estirado no chão até a última gora de sangue e nenhuma ação para devolve-lhe a vida.

A mulher da tapioca no acostamento franze os ombros e acha tudo tão normal. Passa a mão na testa suada, passa um pano na tacha e prepara mais uma tapioca a pedido do cliente que ver o ocorrido e resolver saborear tudo com um petisco, tapioca a moda da rua com bastante queijo derretido e um café forte, quente, fervido; Normal os hippes na praça central a fumarem seus cigarros em culto a livre vida que os tornam seres livres, normal os aposentados sentados nos bancos da praça a rememorar velhos tempos quando as cidades eram lugares bons de ser morar, quando as pessoas se viam nas pessoas, se saudavam, se conheciam e tinham prazer em se ajudar. As cidades em construção, sem grandes velocidades, sem semáforos e de sessão de cinema no fim da tarde.

Os lojistas encerrando seus trabalhos, colocando para dentro das lojas as mercadorias espalhadas pelas calçadas dos estabelecimentos temendo assalto de última hora, arrastão, saqueamento, enquanto os caixas se encerram e a carroça se acha no direito de atrapalhar o trânsito porque o burro achou de despejar seus dejetos ali, logo ali no meio de engarrafamento.

Sorrir o homem banguelo, masca chicletes o cego que distribui panfletos, buzina o carro logo atrás e xinga todos engarrafados dentro do ônibus que pára.

Cenas urbanas, cada um na sua e ninguém na de ninguém. A vontade de chegar, a correria, a disputa pela vaga... Rostos, vozes e quanta falta de gratidão. Um corpo estirado, mãos que se fecham, olhos desencontrados, passos que se arrastam e outros tão apressados.

Suor, vento, poeira e no horizonte o pôr-do-sol em plena nuvem de fumaça. Os pássaros que bailam no céu em coreografia não ensaiada e ninguém assiste ao espetáculo curioso, todos fechados em si, enxergando a si, presos em mundos interiores.

O homem acende um cigarro, a mulher tosse e outra ajeita o batom, um menino corre para o encontro da vida enquanto a bala perdida atinge o ser distante daquela história. O sangue que inunda o corpo e o chão e o choro de tantos corpos solidários. O caçador de papelão vai, vai o cheira cola, o flanelinha, a mulher marcada pela vida pronta para mais uma noite de batalha, chega a travesti, o cachaceiro do beco dos afogados, a mãe que vendia tapioca e sentiu a dor no peito na mesma hora que transpassava a bala no peito do seu filho, chega o fotógrafo jornalístico e tantos flash enquadrados, insensíveis, querendo apenas a melhor imagem...

Tudo vira manchete de jornal e aqueles anônimos que nunca tiveram chance de ser manchete em vida são vítimas de primeira página. E assim caminha a humanidade.