A CINZA EM QUE ARDI

Sempre a vira expor-se de maneira ridícula. Pelo menos para os padrões da época. Tinha lá seus quase oitenta anos e vestia-se como uma mulher de trinta. Um vestido godê preto, que ao vento lhe subia nos ombros, aos meus olhos espantados de 10 anos. Na boca, um batom vermelho delineando os lábios sumidos. Um sorriso largo, de dentes miúdos, com falhas inevitáveis. Gostava de sentir-se assim, livre e talvez a sensibilidade aflorada na pele revelasse apenas um desejo de felicidade. Uma brisa, um aroma, um sopro de vida. Todos ou quase todos a chamavam de louca. Ou caduca. Ou velha destemperada. Ou mesmo, assanhada. Não lhe permitiam explosões em seus pensamentos, nem alfinetadas nas idéias que não se constituíssem um dedal. Crânios duros. Mentes torpes, endurecidas pelo hábito higiênico e padronizado da maioria. Eu, como criança, talvez a seguisse no que tinha de melhor. E o melhor eram os livros que me oferecia. Livros tão antigos quanto a coluna que se comprimia nas vértebras enferrujadas. Livros amarelecidos, capas andrajosas como pedintes de leituras, folhas finas, às vezes rasgadas. Pedaços de livros. Frangalhos de histórias. Mas que me faziam beber da fonte inesgotável da aventura, das trajetórias distintas das que costumava seguir, dos vôos mais altos em que avistava outros prados, diferentes dos que trilhava. Também encontrava pares desconhecidos, mas que se permitiam aos mesmos sonhos ou ilusões.

Ela não arrefecia em mostrar-me este novo mundo, talvez porque visse em mim uma perspicácia desconhecida nos demais de sua família. Um desejo de ir mais longe ou de descobrir o que estava tão perto, mas tão perto, que nem fazia sentido.

Ela era assim: alegre, divertida, faceira, estranha. Um estranho absurdo, que talvez a lançasse aos limites da loucura. Mas esta loucura, este insanidade voraz e desconhecida era exatamente o que a deixava um ser humano integro, inteiro em sua relação peculiar com a vida. Claro que nem todos a entendiam, nem eu. Apenas não a julgava com o olhar de adulto. Encontrava em sua imaginação fértil um contato puro com a realidade mais intima de um pretenso escritor. Tudo que escrevia, num papel encardido de embrulho era devidamente analisado, anotado, compreendido. Quando muito, uma nova visão, um ponto de vista próprio, difícil de atingir, mas que anunciava uma entrega desavisada com cheiro de sonho e gosto de felicidade.

Morava com um irmão tão velho quanto ela e os três sobrinhos. Todos a consideravam amalucada, rótulo vencido. Eu sentia um certo constrangimento em me aproximar, tal era o preconceito que emitiam sobre ela.

Certa vez, ela me chamou pelo muro. Estendeu seus braços finos, com um caderno na mão, tão amarelo quanto os livros. As unhas vermelhas apertavam a capa cerzida na restauração improvisada. Percebi que havia uma espécie de tule ou renda branca, empoeirada, revelando o guardado num daqueles baús imensos que tinha ao lado da cama. Espichei o meu braço, arrastando-o no reboco rugoso e peguei o caderno. Ela fez um sinal cúmplice com a boca, produzindo mil ruguinhas entre os lábios, pedindo que não o abrisse logo, apenas quando estivesse em casa, quieto em meu quarto, frente à escrivaninha escrevendo meus textos, arquitetando minhas historias. Obedeci, quieto. Dali, voltei aos brinquedos: o velho carrinho de latas que puxava imaginando um ônibus passando pelas vielas estreitas da cidade ou assumindo grandes trajetórias, enfrentando pontes e penhascos perigosos. Guardei o caderno embaixo do travesseiro para lê-lo à noite, sem muito tempo para decifrar o que havia nele. Fui para a escola, de lá para casa, o banho, um pouquinho de tv, o sono e esqueci o presente.

Acordamos pela manhã, eu e meus pais com os gritos. Uma ambulância e um olhar de desespero cercado entre braços fortes que a empurravam para dentro do veículo, como se pudesse resistir a não ser com gritos. Um cheiro de fumaça, de papel queimado, de lixo armazenado no fundo do quintal. Meu pai perguntou ao sobrinho mais velho o que estava acontecendo, mas não houve tempo para respostas, a sirene já se ouvia forte, sibilando, abrindo caminho, na rua onde se formavam pequenos grupos, comentando, argumentando explicações ou esclarecimentos que convinham. Alguns meninos que se preparavam para dirigir-se à escola, paravam intrigados, observando a cena. Cenário perfeito para uma investida na imaginação mais tacanha que fosse. Tudo conspirava para o senso comum se estabelecer: dispensar a tia louca para o sanatório.

Meu pai afastou-se do lugar enquanto minha mãe já tomava as últimas da vizinhança. Entramos, a hora se adiantava. A vida continuava. O mundo girava no mesmo ritmo. Um ritmo desordenado em nossa vida caótica. Lembrei de seu irmão mais velho, que nem aparecera. Devia ter ficado lá, constrangido pela covardia em não lutar contra um destino que mais cedo ou mais tarde seria o seu.

Não me contive e desviei do cuidado de meus pais e pulei o muro, na parte traseira do quintal. Atravessei o pequeno alpendre e passei pela cozinha, dirigindo-me ao quarto dela: reduto pouco conhecido, embora lá havia conhecido e ganho os meus primeiros livros. Percebi que o irmão estava encostado no parapeito da janela que dava para o nosso pátio, um cotovelo apoiado, com a mão no queixo, amaciando a barba mal feita e na outra mão, um cigarro de brasa esquecida, quase lhe queimando os dedos.

Afastei-me pé ante pé e abri a porta do quarto, lentamente. Observei a cama de mogno pesado, desarrumada, a cômoda com os porta-retratos atirados, uns sobre os outros como em efeito dominó, alguns livros rasgados. Mas meus olhos se detiveram espantados na velha estante de madeira que emoldurava toda a parede do lado esquerdo, oposto à janela. Estava vazia, uma estante em que moradores notáveis fizeram historia, um Kafka, um Machado, um Guimarães Rosa, um Joice, um Goethe, um Dostoevisk. Demandaram em derradeira missão, talvez desconhecida e definitiva, jamais almejada. Corri para os fundos do quintal, segui a cortina que se antecipava ante meus olhos e um pequeno visgo de fumaça como uma serpente que se insinuava mostrava o caminho. Ali estavam os livros, com suas brochuras à mostra como esqueletos restantes do incêndio homicida, costuras desalinhadas, pedaços de folhas em desenhos disformes, com olhos negros produzidos pelo fogo, marcas indeléveis, transmutando o que era saudável em feridas fatais. Sangue negro escorrido nas cinzas, fome de vingança jamais aplacada. Ainda salvei das últimas chamas alguns farrapos que resistiam talvez aos pingos de sereno. Parte de um livro de Almeida Garret, que li sujando as mãos na página quente, que me doíam os dedos: restos mortais de uma vida que se dissolvia na intolerância.

Seus olhos - se eu sei pintar

O que os meus olhos cegou

Não tinham luz de brilhar.

Era chama de queimar;

E o fogo que a ateou

Vivaz, eterno, divino,

Como facho do Destino.

Divino, eterno! - e suave

Ao mesmo tempo: mas grave

E de tão fatal poder,

Que, num só momento que a vi,

Queimar toda alma senti...

Nem ficou mais de meu ser,

Senão a cinza em que ardi.

Nunca mais a vi. À noite, abri o caderno de capa cerzida e passei a viver assim, embasbacado, até descobrir o sentido das coisas que avistara. Ela fizera um apanhado de minhas histórias, talvez como incentivo a prosseguir no desvendar incessante da imaginação. Um dia, seria talvez um aprendiz de um daqueles escritores famosos. Mais tarde, porém me dei conta que aquelas narrativas não eram minhas, a não ser a semelhança pela ingenuidade e a descoberta prenhe da vida. Eram histórias de há muito tempo atrás, talvez de cinco ou seis décadas, quando ela era tão criança quanto eu e assim, iniciara também seus contos, num caderno, hoje cerzido de linha azul, para preservar o sonho. E talvez, a lucidez.

Gilson Borges Corrêa
Enviado por Gilson Borges Corrêa em 29/12/2008
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