A Despedida

O relógio marcava meio dia. Saiu de casa sorrateiramente antes que sua mãe percebesse que ela não iria almoçar. Imagina se soubesse que desde a noite anterior ela não se alimentava. Dentro de si havia espaço para tudo, menos para comida. Ela não tinha estômago para isso. Pegou o pequeno urso, jogou os poemas impressos numa pasta (somente os menos tristes) e entrou no carro. Deu uma rápida fungada no nariz e olhou-se rapidamente no espelho. Constatou que seus olhos vermelhos deixavam à mostra momentos de dor. Aqueles mesmos olhos que ontem sorriam, agora refletiam agonia e medo. Seus olhos castanhos sofriam com o distanciamento que estava para acontecer. Resolveu voltar e procurar seus óculos escuros. Não queria aquele que usava sempre. Queria o maior de todos, que fosse capaz de esconder o máximo de lágrimas possível. Ainda bem que estava na moda usar óculos grandes.

Ligou o som do carro. Procurava desesperadamente uma música, aquela que ficaria para sempre marcada na memória, e que tanto havia marcado a noite anterior. Não sabia quem cantava, mas “A Dor da Distância” era o seu nome. Em seguida, ligou o motor do carro e se foi. Não dava mais pra adiar; a hora havia chegado. Ela precisava ir em direção ao maior massacre de sua vida: despedir-se de seu grande amor. Bem que poderia enganar-se, dizer que era apenas um momento comum, que ele não era nada além de um amor de verão, algo simples, passageiro e sem importância. Mas não. Era uma parte de si que agora pra longe iria. Cantarolava poucos versos daquela música que sabia de cor. A voz engasgava. O choro incontido arrastava tudo a um vazio sem fim.

Chegou em poucos minutos ao aeroporto. Em frente ao guichê, precisou suspirar antes de pisar no acelerador. Era um momento difícil. Ela sabia que talvez ali os dois ainda respirassem o mesmo ar. Mas em pouco tempo, tudo acabaria.

Pela primeira vez, havia chegado com antecedência a um encontro. Sentiu orgulho de si. Fora tão rápida em tudo que ele, sempre pontual, no meio do caminho ainda estava. Sozinha, tentou vislumbrar como estariam sendo seus últimos momentos em sua cidade. Será que sorria, chorava, escondia aflição, medo, ansiedade? Será que ainda se encantava com alguma paisagem como fazia sempre que estava ao seu lado? Lembrou daquele filme famoso, em que o ator tem a capacidade de ler os pensamentos das mulheres. Sentiu inveja e desejou ter esse super-poder. De uma coisa ela sabia. Se ele estivesse como ela, escondia em seu íntimo uma infinidade de sentimentos, onde o maior deles era, sem dúvida alguma, o medo. Medo de perder. Medo de nunca mais ver.

As portas se abriram. Lá vinha o seu menino, caminhando com seus cachos esvoaçantes e seu sorriso maroto. Sua camisa branca contrastava com a blusa preta que ela usava, e que, embora inconscientemente, indicava a sua dor, luto por perder um grande amor. Aquele branco da paz talvez fosse um sinal, uma forma de dizer que não desejava mais brigar com o teimoso coração daquela garota. Coração teimoso que insistia em traçar toda uma vida, todo um futuro ali, instantaneamente. Ela não tinha pressa. Mas quem disse que ele acreditava? Pra não haver discussão, era melhor silenciar, colocar o preto no branco, e guardar os fortes sentimentos pra um novo encontro. Algo dentro dela insistia em dizer que isso ainda iria acontecer.

Eles não se abraçaram... se entregaram. Aquilo durou alguns minutos, e ela não ousaria tirar seus óculos escuros por nada. Não desejava chocá-lo com suas lágrimas desesperadas, embora silenciosas. Olhou no fundo dos seus olhos, e pareceu ter visto sinais de vermelhidão. Mas ele logo se virou e, arrastando o carrinho com as malas, seguiu caminhando em direção ao balcão da companhia. Descobriu que o vôo estava atrasado em meia hora, e sorriu. Ela, bem que podia agüentar muito mais. Meia hora lá era atraso?! Bem que poderia ocorrer uma pane no sistema que fosse capaz de atrasar toda a malha aérea, pensou. Era estranho. Ela não costumava fazer isso, desejar coisas assim não fazia parte da sua índole. Mas naquele instante ela só queria mesmo era aliviar sua dor, e não hesitou. Desejava prolongar ao máximo aquele momento ao seu lado, custasse o que custasse. Era o seu grande amor.

Ele a chamou para comerem algo. Em silêncio, ele devorava um sanduíche. Ela apenas observava, e relembrava todas as vezes em que almoçaram juntos, da sintonia que tinham até na escolha dos pratos, da fome que ambos sentiam após as horas incessantes de sexo, dos cafés da manhã apressados antes de irem à praia, dos caranguejos devorados entre um mergulho e outro, das batatas fritas que ele colocava em sua boca, e da cerveja também. Eles quase sempre sabiam o que queriam, e escolhiam rapidamente. Quase sempre tinham os mesmos gostos. Quando não, ela acabava conseguindo fazê-lo provar do seu arroz predileto (à piamontese), e ele acabava fazendo-a comer da sua sobremesa, que antes ela julgava tão sem graça.

Poucas palavras, sorrisos disfarçados, olhares tristonhos e o pequeno “Coloral” em meio a tudo isso. Cada vez que seus olhares se cruzavam, ela sorria. Sorria como quem tenta dar-lhe a certeza de que ficaria bem, de que tudo estava sob controle. Como assim, controle? Fazia tempo que ela havia perdido as rédeas de tudo. Em silêncio, engolia a dor. Não sabia direito o que pensar, o que fazer, o que esperar. Como transformar um momento de perda em algo que a fizesse crescer? Como aproveitar aqueles últimos momentos sendo alegre e descontraída como sempre fora? Tentava disfarçar, mas ela sabia: era o começo de um grande sofrer, de um grande pesar.

Após as últimas fotos, ele passou calmamente as mãos em seus cabelos, segurou seu rosto e a beijou, tirando seus óculos para enxergar o fundo de seus olhos. Começou a tagarelar como um papagaio, e só teve a chance de iniciar algumas recomendações, porque com um olhar, ela lhe disse pra parar. Ela queria ouvir, claro que queria, mas precisava escolher entre ouvi-lo e chorar, ou calá-lo e continuar aparentando ser forte. Ficou com a segunda opção. Não era má idéia continuarem o papo das noites anteriores. Isso até a deixou muito feliz. Mas havia chegado o momento do adeus. Uma mulher com voz de computador lembrava incessantemente que era a última chamada para o vôo, e sem nada mais dizerem, beijaram-se carinhosamente. Pessoas sem importância observavam aquela cena, alheias à grandiosidade daquele momento. Ele se levantou, pegou a bolsa que levava no fundo o coração de pelúcia que ganhara dela e outros pertences, sua jaqueta de couro preta, e se foi.

Ela ficou inerte e, enquanto ele caminhava, seu coração torcia para que ele olhasse para trás. E olhou sorrindo. Um emaranhado de vontades a dominou, mas ela não podia esquecer que ainda era sensatez e equilíbrio. E com toda a compostura que a acompanhou a vida inteira, ela continuava aparentando calma e razão. Por dentro, porém, estava pior que uma cama amarrotada. Não sabia dizer se ele estava em pedaços como ela, mas tinha certeza de que o mesmo filme também o atormentava.

Quando o perdeu de vista alguns minutos depois, quis entregar-se à loucura, furar a fila, entrar, invadir tudo e resgatá-lo. Mas não podia. Não podia permitir que o descontrole viesse à tona naqueles instantes finais. Seria a maior bobagem de todos esses meses.

Em uma das mãos, segurava o pequeno urso com nome de palhaço e gorro azul, que lembrava que o Natal estava próximo, talvez o mais triste de sua vida. Na outra mão estava a máquina, ainda ligada. Essa guardava a triste imagem do adeus.

[Escrito em 01 de dezembro de 2007;

Hoje, faz parte de um livro que está sendo produzido.

"PROTEGIDO POR DIREITOS AUTORAIS"]