Última Caçada

Há muito tempo não ia àquelas paragens, onde quando mais menino costumava caçar.

Já fazia também algum tempo que estava morando na capital, e voltando àquela cidade, não via a hora de poder ir até a Lagoa do Sobrado.

Havia ali muitos paturis e caçá-los era uma prática muito desejada.

Dessa vez foi combinada com tempo e fomos de carro até as proximidades.

Já não precisava andar todas aquelas léguas como fazia antes.

Meu amigo levava a sua Winchester CBC Remington calibre 22, de 15 tiros, com teleobjetiva, que usávamos para competição de tiro ao alvo e ainda uma espécie de pistola Beretta, Italiana, calibre 22, de pente com 9 balas, muito parecida com um Parabellum da época da guerra de 45, a qual queríamos testar também naquele dia.

Naquele domingo, peguei uma cartucheira CBC 28 e minha estimada espingarda magrela de "carregar pela boca" ou ainda de "socar pela boca", feita em casa mesmo, com cão de mola de "puxar prá trás". Quem conhece sabe do que estou falando.

Essa espingardinha eu tinha obtido através de uma barganha feita com um colega de escola, o Adauto, que morava nas paragens denominada "Água do Meio".

Ele sempre quis antúrios, aquela planta, que minha mãe tinha no pequeno jardim e em alguns vasos.

Uns vasos de antúrios e mais uns coelhos que eu criava no meio do negócio, a magrela passou a ser minha companheira dos domingos de manhã, nas caçadas nos arredores.

Era uma inclinação de menino muito forte. Sempre voltava para casa com algum troféu. No caminho de retorno, vinha ainda praticando "tiro ao alvo" em qualquer coisa que fosse atração.

Teve até um dia, que aquela boiada de nelore resolveu me olhar com cara feia, e alguns tiros foram prudentes, já que o ecoar dos disparos os manteve à distância, dando tempo de atravessar a invernada lá das "Águas Virtuosas", ou Vertoza como diziam os meninos.

Numa dessas caçadas domingueiras, percebi que a carga de pólvora fora muito grande, e medindo com a vareta de socar a bucha, dava uns oito dedos, o que era assustador. a vareta que eu usava para socar a carga do tiro não tinha saca-trapo, que daria para retirar a carga ainda sem os chumbos.

No embornal, nenhuma outra ferramenta existia que pudesse me auxiliar.

Bem, acho que a caçada desse dia estava suspensa até achar uma maneira de tirar aquela carga de pólvora do cano da espingarda.

Naquelas alturas eu não estava tão longe. Pensei voltar para casa, mas não poderia deixar na arma aquela carga de pólvora preta. Poderia ocorrer um acidente.

Sentei próximo ao regato, com a folha de um caeté tomei bons goles daquela água pura e cristalina, direta da nascente, junto ao olho d’água, enquanto matutava em uma solução.

Não é que me ocorreu uma idéia.

Eu estava próximo de um barranco. Assim, como acreditava que o cano da espingarda não resistiria à explosão, e isso é que me impedia de simplesmente atirar e descarregar a arma normalmente, pensava em provocar um disparo longe de mim.

Além do que, conhecia muitos casos de explosões, onde o tiro saía pela culatra literalmente, podendo matar, como ocorreu com um menino da vizinhança, cujo “guardamento do corpo” (velório) eu fui. Morrera com chumbos e com o “ouvido” da espingarda que havia explodido, penetrando-lhe na cabeça pelo olho. Muito triste.

Assim, não deveria ser eu uma nova vítima.

Minha idéia foi pegar a espingarda, colocar uma “escorva” (espoleta) no “ouvido” da mesma, engatilhar puxando para trás o cão e arremessar a arma para o lado de cima do barranco e me agachando para me proteger.

Assim a arma dispararia e se por acaso explodisse, não me causaria mal algum. Pensava que isso daria certo, e assim, caso o cano “agüentasse” e não explodisse, talvez até continuasse na caçada domingueira.

Arquitetado o plano, restava ainda mais um cuidado, olhar lá em cima, se não havia nenhuma outra viv’alma que pudesse eventualmente ser atingida.

Tudo preparado, desci o barranco e indo até a posição onde eu me sentisse mais seguro para a operação.

Tudo perfeito. Como previsto, preparei o artefato e arremessei minha estimada espingardinha para o lado de cima do barranco.

Foi um tirambasso e tanto que ecoou pelo vale, espantando aves e animais silvestres que estavam ainda sonolentos.

O leitor, nessas alturas, está curioso para saber o que ocorreu comigo, não é mesmo?

Bom, estou vivinho escrevendo aqui... e a última caçada que me propus a contar, nada tem a ver com coisas trágicas e sim com resultados felizes. Esse fato que passei a narrar entremeado ao tema, foram também lembranças que ilustram a história.

O fato é que, depois daquele tremendo estouro, subi para ver o que acontecera com minha estimada espingarda de “carregar pela boca”. A expectativa era de que ela tivesse com o cano ou o ouvido explodido. Mas qual o que, o danado resistiu de forma impressionante. Mas a coronha da arma, coitada, era de madeira não muito resistente, simplesmente quebrou e dois pedaços, na altura do suporte próximo ao gatilho.

Assim, embora o cano tivesse resistido, estava abortada a caçada do dia.

Voltei para casa triste, com os pedaços para ver como consertar.

Bom, consertei, pois meu irmão Paulo, que trabalhava na marcenaria do Mortean, me fez nova coronha. Não ficou aquela maravilha, mas está lá até hoje como lembrança.

Algum tempo depois, essa espingarda veio comigo para São Paulo e hoje, depois de ter seu cano e peças de aço tratados e cromados, já não serve para caça e sim para ornamento da parede da minha casa lá do sítio, pelas bandas de Piedade, depois de Ibiúna.

Mas assim era a rotina naquelas paragens. Trabalhar duramente na semana e caçar aos domingos, invariavelmente só.

Esse era o motivo pelo qual estava ansioso para voltar a caçar depois de tanto tempo.

Mas o tempo havia mudado um pouco o ambiente, não havia tanta caça, além do que, na travessia da lagoa atrás dos paturis, me enchi de sangue-sugas, quando perdi também muito tempo para livrar-me deles que me grudaram pelo corpo, macacão e coturno.

Assim, fui adentrando mais pela mata e arbustos ressequidos, por terreno mais seco, na tentativa de encontrar alguma juruti, nhambu ou codorna. Esses dois últimos, um pouco difícil conseguir sem o auxílio de um bom perdigueiro.

Foi nessa andança que já cansado me deparei com uma enorme “pomba azulega”, juruti das grandes. Visto o alvo, me abaixei quietinho, negaceando e me preparando para o tiro. Peguei a 28, verifiquei o cartucho com chumbo 5, levantei, mirei, mas, não atirei... resolvi que aquele privilégio deveria ser para a magrela de “carregar pela boca”, e troquei de arma. Tanta celeuma, a pomba poderia já ter voado e desaparecido, mas ela continuava lá, como esperando a morte certa.

Assim, da mesma forma, levantei a arma me posicionando para o tiro, mirei, impossível perder o tiro. Meu colega Norival estava impaciente aguardando o desfecho e percebeu que eu estava demorando muito por algum motivo.

De fato, na verdade, eu estava é apreciando a beleza daquela ave, que cuidava delicadamente de sua linda plumagem. Tal beleza me fez entender naquele momento, o tamanho mal que estava causando à natureza.

O que justificaria, para vir de tão longe, para tirar a vida daquela maravilha?

Pensei comigo mesmo, aquele seria meu último tiro. Levantei um pouco mais o cano, tirando a ave da alça da mira e puxei o gatilho, atirando assim para cima, apenas para espantar a ave e vê-la voar esbaforida com o enorme susto, já que tiro com pólvora preta faz um enorme barulho.

Me lembro como se fosse hoje.

Nunca mais voltei a caçar no mato.

Já contei esse fato a alguns e também sobre como o coração amoleceu para todas as coisas relativas à natureza, passando a entendê-la e agora a protegê-la.

Situação contrária, no entanto, outros seres meus semelhantes, muitas vezes de índoles piores que os negaceadores da mata, sem escrúpulos no trabalho, me fizeram por vezes despertarem esses meus velhos instintos de caçador, e me posicionar em um jogo de caça para sobreviver na concorrência acirrada na selva de pedra, inescrupulosa e cheia de desafios que me petrificaram os nervos e combaliram o coração.

É interessante como o ser humano tem uma grande capacidade de buscar prejudicar outros, ou por inveja, antipatia ou mesmo por pura mediocridade.

Embora profissionalmente eu tenha buscado sempre a competência, creio que essa tenacidade, sem medir esforços ou distâncias a percorrer, análogo às caçadas de outrora, incomodaram alguns que me apareceram nessa balada.

O ardil, por muito tempo passou a ser moldado pela inteligência e astúcia sem igual, mas de desafios dos quais nunca fugi.

Assim, sempre que ameaçado, de forma análoga, sendo literalmente caçado sem trégua, lamentava nesses momentos me verem aflorarem novamente meus instintos, e, de tempos em tempos, entre as ramagens e meandros da empresa armando uma forma de sair vencedor, o que invariavelmente tem acontecido na vida profissional.

Aprendi a duras penas, que nesses casos o tiro não pode ser para espantar, terá que ser certeiro! Esses obstáculos inevitáveis nos tomam muito tempo e traz prejuízos incalculáveis para todos, mas, que se há de fazer, aparecem...

Hoje, já me vendo no limiar da aposentadoria, ainda sou, felizmente, buscado para desafios profissionais, o que me dão grande prazer e me enchem de motivada satisfação, e o ardil é para os resultados alentadores que a experiência proporciona, já que são matas com trilhas caminhadas por muitas vezes, com conhecimentos sedimentados do local onde estão as nascentes que vertem a satisfação do trabalho bem sucedido.

Já não preciso mais, do alto da experiência, ter preocupações mesquinhas.

O tempo fez a sua parte.

Dessa forma, também nessa lida, já estou preparado para o último tiro da caçada nesse campo, passando a ser mais um folclore que o tempo se incumbirá de ir apagando.

É assim, a empresas não tem alma... tem pessoas! O conjunto de almas dessas pessoas é que a levará para o céu ou inferno ao sabor das circunstâncias que a modelam no tempo.

Novos desafios me atraem, sentindo que a sociedade ainda pode ter algum benefício e aproveitar um pouco mais desse incansável caçador... só que em campos diferentes!

São Paulo, 09.01.2009

MARCO ANTONIO PEREIRA
Enviado por MARCO ANTONIO PEREIRA em 10/01/2009
Reeditado em 11/01/2009
Código do texto: T1376984
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