Alguns homens viram anjos

– Eu tive uma infância muito bonita; éramos uma família unida. Hoje percebo que a união não era um predicado, era instintiva, sem ela não sobreviveríamos. Os tempos eram outros e as pessoas eram feitas de um “barro” que já não existe.

Ali, encostado nos restos de um velho lavatório, ele trazia nas palavras e nas expressões do rosto histórias das quais participou, retalhos da vida que nele grudaram ao longo dos setenta e quatro anos completados naquele dia. Pessoas, a mim desconhecidas, chegavam para cumprimentá-lo, interrompendo a narrativa cheia de emoção; ele se rendia à obrigação, e retomava entusiasmado à oportunidade de estar sendo ouvido.

– Certa vez – continuou – meu pai, com dinheiro emprestado, comprou três vacas do Euclides. Duas morreram na cocheira nos primeiros dias, e a terceira morreu quando pariu a Mimosa que se criou muito próxima,

pois passamos a alimentá-la com mamadeira.

Tornou-se, quando adulta, a mais mansa de todas e chegava a dar onze litros de leite pela manhã e mais onze à tarde.

Um dia, Mimosa apareceu mancando, e dali em diante ela foi definhando, até que um dia o Dr. Colombo, o veterinário, sugeriu sacrificá-la, mas meu pai não autorizou; quis poupar-nos, mas também não podia correr o risco de ter de remover um animal daquele porte se, porventura, viesse a morrer na cocheira. Resolveu-se, então, que Mimosa seria abandonada na mata distante, para morrer em paz. E assim foi feito.

Alguns meses depois – aí as lágrimas corriam pelo seu rosto –, o dinheiro acabou e as esperanças também; mas não a fé.

Minha mãe, desesperada com a situação, e com o desânimo de meu pai, aproximava-se sempre dele e, com cuidado para não magoá-lo, pedia carinhosamente:

– Antônio, vá à busca da Mimosa!

Meu pai respondia com clemência:

– Mulher... como posso ir à busca de uma vaca que abandonei para morrer há quase quatro meses?

Ela não desanimava, mas chorava às escondidas.

Minhas irmãs mais novas andavam ao léu; o dinheiro das mais velhas, que trabalhavam na tecelagem, mal dava para os juros, e eu, muito jovem, não entendia direito, mas sabia que algo havia mudado, e não para melhor, pois eu andava triste.

Certo dia, minha mãe acordou-me antes de todos e, às escondidas de meu pai, saímos, ainda noite, em busca da Mimosa. Embrenhamo-nos no mato, na vã esperança de encontrá-la. Inquirimos a todos que por nós passavam e nada; nenhuma informação que nos alentasse. O semblante de minha mãe havia esmorecido e meu coração doía, mas, enfim, fé é fé!

Não é que um encardido menino nos disse haver visto, entre o gado do Major, uma vaca de cocheira com as características da Mimosa?

Curioso como o alento dissolve a fadiga! Fomos os dois a correr em direção ao pasto indicado, e lá chegando, os olhos de minha mãe com medo de não vê-la, não viu; os meus, puros, de menino, logo a avistaram. Cerquei-a eu de um lado, e minha mãe, radiante e lépida como uma gazela, cercou-a do outro. Parecíamos estar a brincar; cortamos um pedaço de cipó e, pela hora do almoço, chegamos em casa conduzindo Mimosa.

No almoço daquele dia a alegria havia voltado aos olhos de meu pai; ele fez alguns gracejos sobre nossa aventura, e todos nos deliciamos. As dificuldades eram as mesmas, mas aquele dia estava ganho.

Ele estava enxugando as lágrimas na manga da camisa, quando a atual mulher veio nos chamar para cantarmos os parabéns.

Sentado à cabeceira da mesa, cercado de um mundo novo, aquele homem simples que sempre esteve presente em minha vida, estava diferente... Ele brilhava... E foi aí, quando nossos olhares se cruzaram no auge do piquepique, que eu descobri como se formam os anjos.

Ele piscou em cumplicidade, e a algazarra tomou conta do lugar.