Muda no 31

Muda no 31

Se fosse um conto, a imaginação do leitor avoaria sobre uma mulher muda, residente no trigésimo primeiro andar. Avoaria não existe no dicionário. Mas faz sentido, certo? Certo. O que me escapa à percepção está no “conceito” da Nova Ortografia, que decreta:

autorretrato. Mentes brilhantes que não lucram com a reforma teceriam comentários mordazes sobre o autorretrato. Mas isto não é um conto, e sim uma crônica. Apesar de que o bruxo argentino Borges adorava mudar a ordem estabelecida, transformando contos em artigos, artigos em crônicas, crônicas em contos. Crônicas em Contos daria um bom título, até mesmo para um artigo.

Hoje, 30 do 1, ao olhar para trás, a mesma sensação de novembro passado, um mês que, para mim, só teve 2 dias. Perceptivamente dizendo. Lembro-me do 1, e do 31. Hoje estamos no Alto do Ipiranga, com 200 livros da mulher do Guilherme no banco de trás, para voltarem para o acabamento. Vieram com defeito. Nem um, nem dois, duzentos. Pessoal resolveu errar por extenso. Saímos da casa do Guilherme apreensivos como os nativos de Krakatoa, com o vulcão. Nosso vulcão está no céu. São Paulo não pode reclamar de falta de chuva nesta semana. Turnê de 45 minutos até a oficina do seu Edson, no Alto do Ipiranga. Desde que os livros chegaram mancos de uma lombada, o humor do Guilherme anda semelhante aos fenômenos climáticos. Quando o telefone tocou ontem à noite, eu não poderia imaginar que o desfecho de uma conversa inocente culminaria no resgate de uma criança deficiente oral, presa no hangar 31. Vai me dizer que sua imaginação não avoou na imagem da criança e do suposto hangar? Ora, não precisa agradecer, estamos aqui para servir.

Determinada qualidade vibracional na rua Gentil de Moura, no Alto do Ipiranga, por conta das chuvas semanais. Ninguém perdeu a vida, mas perdeu-se patrimônio. O mais interessante repousa na simetria das conclusões. Moradores ali residentes há mais de 40 anos, comentam que já estão fartos de conviverem com as tardes torrenciais de verão paulistanas, e que nunca um vaso sequer caiu da janela. E que durante 40 anos suas casas jamais apresentaram rachaduras de qualquer espécie. Porém, desde que a Linha Verde do metrô, nesse rancho instalou-se...O metrô culpa os bueiros.

Seu Edson e sua oficina estão a dois passos da confusão. Guilherme, alegre como uma víbora. Dirijo o carro da mulher dele observando a paisagem no meio da feiúra. Quando Guilherme completou 18 anos, foi tirar um racha de carro na Marginal Pinheiros. Depois de capotar xis vezes no acostamento, enfrentou um semestre inteiro de UTI, e o sujeito ao lado dele ganhou passagem de ida para a outra dimensão. Nunca mais ele dirigiu. Temos a mesma idade, estudamos no mesmo colégio, chegamos a tocar juntos na famosa Orquestra dos Palitos, na casa do Carlito. Ai, ai, as coisas que não se faz, para enfeitar a leitura.

Seu Edson também não apresentava o melhor dos humores, a oficina dá nos fundos do muro que caiu, tendo assim sorvido alguns respingos de cimento. Pensei calmamente – nada disso me pertence. Estou apenas servindo um companheiro de longa data, amigos são para isso mesmo, mas os gênios alheios devem ficar fora do meu círculo. E enquanto os dois se desentendem, vou tomar o novo guaraná.

Bela mulher no balcão. Suspiro. “Já não sou tão jovem para me quedar pelos encantos de uma mulher, e nem tão velho para não me deixar apaixonar, sem motivo algum”. Boa citação para as 11 da manhã. Guilherme e Edson concluíram as preliminares.

- O que você está bebendo? – indagou Guilherme.

A bela mulher já havia retirado a garrafa, restando assim respectivamente o copo e o líquido branco gasoso dentro do copo.

A pergunta do Guilherme fora retórica. A conclusão nem tanto.

- Tem cheiro e gosto de guaraná. Se eu fosse cego, juraria que era guaraná.

Seu Edson prefere pinga. Bebida número um dos mecânicos. Deve ser por causa do motor. Uma visão que sempre me deu engulhos. Nem mesmo bêbado tinha a curiosidade desperta para decifrar-lhe os segredos.

Não é de hoje que perdi completamente a necessidade de indagar sobre a lógica das coisas. O combinado seria levar os levar os livros para o acabamento, no bairro do Sapopemba. Estamos numa oficina mecânica no Alto do Ipiranga. Melhor dizendo, estamos numa padaria próxima a oficina. “Quanto tempo isso vai durar?”, deve ter pensado, um dos desafetos do Torquemada.

Fui fumar um cigarrito na calçada, céu plúmbeo, estranho verão, tudo ótimo até chegar o Tato, num carrinho vermelho importado. Passa por mim sem me cumprimentar, o que me parece perfeitamente razoável, já que não nos conhecemos. Dirige-se sem hesitação para a mesa onde Guilherme e Edson concluíam as etapas posteriores às preliminares. Com a chegada do Tato, novas preliminares tem efeito.

Tato is: sobrinho do Edson e filho do dono da gráfica. Viera pegar os livros. Um pouco de paciência e as revelações vão surgindo. O próprio Tato se encarregou de realizar o transplante de livros para o seu possante vermelho. Vai e volta. Tio e sobrinho tinham uma questão importantíssima, e não se incomodaram de tratá-la na nossa frente.

- Não, tio, não quero levar suas tranqueiras para Bertioga. Já está garoando e a previsão do tempo para o ...

- Tato, Tato – replica Edson – escuta o tio. Hoje é 30. Quando der meia noite e um, muda tudo, entendeu? Vai levar, e assunto encerrado.

Tato foi-se. Novas revelações. Voltaremos de metro, pois o carro ficará sob os auspícios do seu Edson. Que por sinal está nos convidando para almoçar num restaurante de frutos do mar, logo ali. Boa notícia para as 12 horas. Camarão à grega para convidados e anfitrião. Perto da sobremesa chegam duas mulheres de meia idade, elegantemente vestidas. Grau de parentesco muito próximo do seu Edson. Precisamente, são filhas. A vida é feita de preliminares. Guilherme estava em família, ali. Na animação de cafés e tortas não sei de que, ele vira para mim e exclama:

- Ei, você não tinha umas dúvidas jurídicas para esclarecer? Então aproveita, elas são advogadas.

Sopa no mel. De agenda em punho e muita calma nessa hora, em 15 minutos as duas elucidaram pontos cruciais sobre uma possível demanda, onde até então muita gente falou demais, sem consenso algum. A assertividade da sabedoria delas não deixava margem para dualidades. Me deram até um cartão.

Hora de partir. Krakatoa avisa que entrará em atividade nas próximas horas.

Despedida calorosa na estação Brigadeiro. Bom reencontro. Boas surpresas.

Volto refletindo sobre as surpresas. Casamento perfeito com um milenar provérbio oriental, ouvido ontem:

“Se ficares pacientemente na beira do rio, verás o corpo do seu inimigo passar boiando”.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 30/01/2009
Reeditado em 08/07/2013
Código do texto: T1413595
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