Criação

Criação

Doze filhos ela teve, mas só percebeu a metade, ainda assim muito tempo depois. Foi por diversas vezes que julguei tê-la visto na entrada, pensando em suas claudicadas. As pernas cruzadas, o trejeito do polegar na ponta do queixo. Sua alegria já não disfarçava mais as tantas controvérsias. Sem rumo? O conteúdo esgarçado daquele guarda roupa daria em nada, ela sabia, mas temia, por orgulho quem sabe, o aprumo de novos costumes. Sua vida se confundiu. Julguei vê-la sentada ao meu lado, no trem, ela poderia estar indo ver as filhas, que cresceram. Não a julgaria perdida, se ela não tivesse desistido. Se ela tivesse retomado. Quem sabe? Talvez acorde sobressaltada no meio da noite para fumar um cigarro na varanda, pensando em se render, cogitando se curvar sob o altar das estrelas, e nessa flexão resgatar sua bússola, respeitar sua bússola. Ela perdeu o rumo de si mesma sem ao menos se dar a chance de ficar ensimesmada. Por diversas vezes julguei tê-la visto passeando na calçada, a bolsa presa no ombro, a posição do braço apoiado na bolsa, a cabeça virada. Sua alegria foi embora, por puro falsete. Há doze anos não a vejo. Sua voz estava diferente. Ia de um lado para outro, dispersa, muitas lembranças numa só pessoa, muitos nomes, muitas dúvidas. Incontáveis divisões num caminho sem soma e sem previsões. Julguei ter sonhado com ela a noite passada. Perambulava pela rodoviária, aflita, esperando o ônibus que lhe traria os três filhos de volta. Mas eles cresceram. E partiram. Julguei vê-la à distância, entre os transeuntes, indagando pela mãe, pelo pai, pela avó, indagando, prostrada no semáforo, descuidada, sem realizar que morreram, partiram, cresceram. Julguei bons ideais para sua velhice. Foi por diversas vezes que julguei tê-la encarado de frente para compreender, para agradecer, para lembrar. Depois de muito julgar atinei, que por ventura sequer a tenha visto. Nem toda a atenção segue um trajeto, mas toda órbita tem seu prazo. Quem sabe essa fantasiosa narração não seja apenas fruto da minha criação. Que talvez nem seja minha, e sim dela.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 10/02/2009
Reeditado em 01/07/2013
Código do texto: T1432168
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