Francisco escreve em cinza

Pediram-me um texto. Pelo que entendi, serve qualquer um. Pediram-me enquanto eu dormia. Pelo horário do pedido, o pedinte estava só, amargurado, macambúzio. Pessoas assim, via de regra, quando são de ler, o fazem compulsivamente. Devoram letras, pulam frases e intuem contextos. São bons leitores porque absorvem estórias sem digeri-las.
 
O que estou a escrever? Espero ser perdoado.
 
Serve qualquer um. Eu disse isso? Bem, faltou complementar. Serve qualquer um desde que seja cinza. Minhas palavras. A do pedido foi... “Sombrio”.
 
Lembrei da Dona Neide, minha professora de Língua Portuguesa na sexta série do Colégio Santo Agostinho no Leblon. Dona Neide era excelente professora. Dominava as técnicas gramaticais e mantinha uma coerência no falar que chegava a inibir quem exagerasse do coloquialismo. Na sexta série – acho pertinente o registro – isso valia para quase todo mundo.
 
Dela lembrei, pois numa daquelas manhãs ensolaradas do Leblon, provavelmente entre o recreio e a aula de física, foi dela que ouvi uma das frases que mais marcaram minha relação com a palavra escrita: “É importante – importantíssimo (gostava de ênfase a D. Neide) – que o texto seja definitivo. O bom texto tem que ser entendido imediatamente”. O complemento é o que mais importa: “Confundir o leitor é fracassar na escrita”.
 
Sombrio... Sombrio... Sombrio...
 
Nos últimos dias, o que mais reverberou em minha cabeça foi esse raio de palavra. E também Dona Neide, por óbvio.
 
Sombrio é a melhor imagem, a perfeita tradução intuitiva de algo confuso, enrolado, indeciso. Não é claro? Não consegue ser claro? Pois que seja escuro. Definitivamente escuro. Dona Neide falaria isso. Aposto as moedas que tilintam no meu bolso da calça, enquanto ando em busca de garrafas de água com gás no escaldante sol que castiga os cariocas que trabalham no centro da cidade maravilhosa.
 
Pelo jeito tenho conseguido fracassar. Há de esmerar-se. De um lado, o sim, do lado oposto, em negrito e itálico, o não.
 
Aparentemente é simples, não? Pode-se até escrever mal, pessimamente, talvez. Mas escreve-se pro norte ou pro sul, pro preto ou pro branco. Moleza.
 
Moleza?
 
Escrevo sobre o talvez. Talvez seja bom. Talvez, não. Confundir o leitor é fracassar na escrita.
 
- O próximo, por favor!
 
Sombrio. Deve ser por isso que minhas redações oscilavam entre o cinco e o sete. Pensava até hoje que era em função de sempre fugir do tema do texto (Dona Neide era implacável). Hoje vejo que tudo não passava de um grande eufemismo (Ela também era sensível).
 
Dona Neide – grande frasista – repetia sempre uma espécie de mantra que agora, agorinha mesmo, também veio à minha cabeça. Costumo usá-lo em doses draconianas entre meus pares: “Tudo pelo Brasil!”. Vale tanto ou quase tanto como aforismos mais conhecidos como “Vida que segue”, “Vamos levando”, “Fazer o quê?”.
 
Fazer o quê?
 
Fazer nada, ora bolas.
 
Adiantaria?
 
A única coisa que devo admitir como obrigação numa hora dessas é atender ao pedido que me recobrou (seria esse o verbo adequado?) a consciência.
 
Segura aí, cara! Um texto curto, pois agora o macambúzio sou eu. Pode colocar o título que melhor lhe convier.
 
Na hora em que sentiu que sua tática não daria certo, que depois de tantas tentativas frustradas ele não conseguiria mais convencê-la a acompanhar-lhe no caminho de volta ao hotel, Francisco perdeu as estribeiras, o controle, a parcimônia.
 
Depois perderia também a razão.
 
Suas unhas entrando no delicado braço da moça, suas palavras mais agudas do que o normal, atingindo muito mais do que precisavam fazê-lo, sua salivação excessiva e seu passo indeciso a assustavam, fazendo com que gritasse.
 
Gritos, às vezes, de nada adiantam.
 
Seria seu caso.
 
Francisco a ordenava. Ordenava-a para que admitisse. Precisava mostrar força, ainda que soubesse que agia de forma oposta. Precisava ouvir o “não”, ainda que provocasse o “sim”, o “sim” que confessaria.
 
- Fiquei, Chico! Quer saber? Fiquei com ele sim. Fiquei sim! Naquele fim-de-semana que você viajou pra São Paulo. Conversamos, bebemos um pouco, fomos dançar... Aconteceu. Aconteceu, porra! Não era pra ter acontecido, mas aconteceu. Quer saber? Não gostei. Na verdade, odiei. Eu te amo, Chico. Francisco, você é a minha vida. Minha vida, porra!
 
As mãos de Francisco correram dos braços para os ombros e de lá para a garganta. Chico também a amava. Amou e a amaria para sempre. Tantos planos, tantos projetos e sonhos. Enquanto pressionava inflexíveis polegares contra uma glote que jamais resistiria, encostou todo o corpo no corpo que amava, e que matava, querendo e sem querer.
 
Francisco – tudo acabado – chorou apenas a perda.
 
Não era ele o algoz.
 
Taí.  Acho que esse tem algo de cinza.
 
Acho, também, que meu nome é Francisco.

Gustaalbuquerque
Enviado por Gustaalbuquerque em 19/02/2009
Código do texto: T1447847
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