Frases Feitas

Demorou 35 anos. Começou a trabalhar aos 18. Aos 53 vieram os primeiros sintomas. A cada dia achava-se mais feliz. Conseguira amealhar alguns recursos que lhe permitiriam viver com dignidade por mais duas décadas, tempo estimado por ele para a sua expectativa de vida.

Em função disso, não havia mais porque sujeitar-se a situações pré-estabelecidas em qualquer ambiente de trabalho: puxar discretamente o saco do chefe; sorrir do que ele falasse, ainda que tivesse a certeza de que era a maior imbecilidade; sorrir do que conversava com os colegas à hora do almoço, ainda que não tivesse a menor graça; priorizar o assunto FUTEBOL, mesmo que essa paixão nacional não fosse assim tão significativa para ele; adotar a política do “boca fechada não entra mosca”, como forma de não se comprometer com nada do que dissesse; ou com a política do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, como garantia da sua invulnerabilidade quanto ao progresso de sua carreira na organização ou blindagem contra as tentativas de outros concorrentes para que ele não fosse promovido.

Às favas quanto à questão do relacionamento. Começava a ter o direito de não se preocupar se seria ou não aceito pelos colegas da repartição.

Isso tudo agora era tão bom de experimentar. Passaria a estar ao lado somente das pessoas cujas fragilidades sabia que deveria respeitar, na medida em que esperava que essas mesmas pessoas respeitassem as fragilidades dele. Não haveria muita gente, reconhecia, que lhe garantisse isso. Mas tinha certeza de que não estaria sozinho. Havia quem o aceitasse. Fizera amigos. E esses deveriam ser tratados como uma tábua de 0,30m no oceano.

Parecia que ela chegara finalmente: a liberdade.

Percebia que a cada dia tornava-se mais feliz. O peito se enchia de ar todas as manhãs. Checava alguns dados de exame clínico, o que concorria para um estado maior de satisfação pessoal: pressão sanguínea normal; baixos índices de colesterol ruim; nível de PSA abaixo do limite; glicose controlada. Observou com recatada alegria a sua perda de peso, decorrente das caminhadas que agora tinha tempo e ânimo de fazer.

E tudo prosseguia (como deveria ter sido sempre). A cada dia os pulmões mais inflados de ar (puro). O peito foi se enchendo tanto que um dia... estourou. Em que pese as melhores condições de saúde, o ataque cardíaco foi fulminante e totalmente imprevisível. Dessas coisas que acontecem e não se sabe por quê.

Morreu de felicidade, foi a conclusão com menor probabilidade de erro a que se chegou. Aos 55 anos de idade. Dois anos depois de tudo ter começado a melhorar. Será que “se melhorar, estraga?”

Rio, 03/03/2009

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 04/03/2009
Código do texto: T1468301
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