Sozinho

Bruno nunca havia passado um fim de semana longe de casa, longe do convívio dos familiares. Sentiu saudade dos pais e dos irmãos; uma dor doída que não o deixava esquecer que estava só. Era o primeiro fim de semana no quartel. O dia passava devagar e as horas eram vazias. Esquivava-se das companhias; não importando se fossem boas ou más, queria ficar só. Mas a saudade dos pais e dos irmãos apertava. Todos eram estranhos, tinham costumes diferentes e não queria tê-los como amigos. Aliás, ele nunca teve amigos. Não conhecia o gosto de uma amizade. Sempre fora só. Não conhecia a sensação de ser amado de forma espontânea.
A rotina seguia alheia aos seus temores. Ninguém estava ligando para os seus temores. Achou um canto vazio. Todos estavam dispersos com suas distrações para passar o tempo: uns jogavam bola, outros jogavam dominó ou cartas; e tinha, ainda, os que simplesmente jogavam conversa fora.
Sentou-se à sombra, na calçada do pátio interno do prédio e respirou aliviado o silêncio que o cercava. Olhou a grama verde bem aparada e logo subiu um alvoroço, uma algazarra que o fez fechar os olhos e por cabeça em junco: o sargento contara na tarde anterior que, em tempos idos, aquele lugar fora palco de grandes batalhas. Tratava-se da sexta-feira sanguenta: se um tivesse uma sisma com outro, naquele instante, podia desafiar o seu desafeto. Ninguém estava livre do combate, ninguém podia recusar o desafio. A luta não acabava até que ambos oponentes estivessem doridos e impossibilitados de se manter em pé. Uma cena que lhe causou e repulsa e tremor. Quis sair dali correndo, porém sentiu sua perna presa, pesada.
A solidão continuava maltratando o seu peito e ele retinha a lágrimas a todo custo. Tinha a idade de homem, mas ainda se sentia um menino, triste e acuado num canto macerando a dor da saudade que poucas vezes experimentara. Só ele sabia o quanto as pessoas o assustavam. Lutava contra o seu medo. Precisava vencer o medo das pessoas. A idade cobrava dele responsabilidades para as quais ele não se sentia preparado.
Sentia a necessidade de ser amado. Mas não se lembrava de alguma vez, alguém lhe tivesse dito que o amava. Pois até então só havia conhecido pessoas que não sabiam amar. E é claro, ele também não sabia amar. O amor que havia aprendido era uma frio; se é que era amor; baseado no suprimento das necessidades básicas, coisas de gerações passadas, onde os filhos eram criados, nunca educados e sequer instruídos para os verdadeiros desafios da vida.
Algumas mulheres já haviam passado pela sua vida. Mulheres que desejaram o seu amor. Amor que ele hoje sabe era apenas o prazer da carne, o amor descartável da luxúria.
A conversa com os companheiros de quarentena, quando inevitável, lhe causava tremores. Todos pareciam felizes e completamente à vontade como que num acampamento de verão. Contavam passagens de suas vidas, dos amores que tiveram, de suas aventuras e de como lidaram com as suas desventuras. Seu coração acelerava aos poucos a medida aumentava a possibilidade de alguém lhe perguntar sobre a sua vida. Sobre a sua vida vazia de histórias, de aventuras, de tantas desventuras. Ele não possuia inclinação para algazarras e sentia-se excluído daquele grupo que garganteava suas experiências sexuais e suas frequentes passagens pelos bordéis em camas de aluguel com mulheres estranhas.
Bruno conflitava consigo mesmo entre a necessidade de ser com um deles e seu propósito de manter seus valores, pois assim se inclinava a sua índole. Qualquer aventura com alguma mulher não era para ser divida com quer que fosse, exibida como um troféu. Ele não tinha que provar nada para ninguém a respeito da sua masculinidade. Como era difícil, naquele momento, ser diferente, no modo de pensar? não desejava ser querido e ovacionado, contudo, não queria ser hostilizado.
Se não amava, ou seja, se não sabia amar, por que então sentia saudade? A solidão dóia no seu peito a medida que a sua mente capturava lembranças de momentos passados com a fámilia. Por mais que se sentisse sozinho e infeliz naqueles instantes, não deixava de sentir-se invadido por passagens alegres de sua infância; das brincadeiras diárias, dos gestos de carinho da proteção dos irmãos mais velhos, do cuidado dos pais; sim, tivera amigos, sim; companheiros de batalhas, que juntos desbravavam as matas ao derredor, dirigiam os ônibus de viagem, subiam em árvores, eram grandes vencedores das peladas diárias e dos campeonatos de futebol de botão, grandes contadores de histórias, grandes construtores, enfim grandes amigos. Mas eles não estavam ali.
Soou o alarme. Era chegada a hora do jantar. Bruno ainda tinha que vencer toda escuridão daquela noite. Aquele era um mundo novo onde ele talvez não fosse um estranho, apenas alguém com uma história diferente das outras. Entretanto, era preciso começar a aprender a amar a si mesmo antes de esperar o amor dos outros. Com o amor, com certeza, viria o respeito. Depois, poderia aprender a amar os outros e entender seus modos de pensar e aprender a conquistá-los e vencer os obstáculos talhados pelos estereotipos de suas personalidades.     
Sentia-se fortalecido pelas lembranças, pela certeza de que breve voltaria a respirar de outra vez os ares da liberdade, pelas conclusões que formulara em seus pensamentos. Todavia, a liberdade deveria começar naquele instante. Era preciso reunir todas as forças necessárias para quebrar aquele casulo que ele havia construído em torno de si mesmo. Aqueles seres estranhos bradavam em alta voz apenas para suplantar os seus medos e impor aos outros um respeito que não tinham consigo próprios. Levantou-se com energia. Leve e nutrido de uma alegria revigorante, sorriu e despediu a solidão. A saudade ainda permanecia como um simples e forte motivo para voltar para casa. Estava melhor agora. Não era mais sozinho.



Este texto faz parte da coletânea Alma Nua de Ivo Crifar, pela editora Baraúna.