A R R E P E N D I M E N TO? -- N Ã O !

MEMÓRIAS DA INFÂNCIA - I

Na trajetória da nossa vida, tantas coisas fizemos, tantas decisões tomamos e nos enveredamos por tantos caminhos que, na velhice, quando voltamos ao passado e queremos rever esse filme que fizemos, podemos sentir muita alegria ou, quem sabe, arrependermos de algumas de nossas ações e, até, lamentar algumas tristezas ou projetos fracassados.

Felizes e bem-aventurados aqueles que, na sua velhice, podem dizer: - “Não me arrependo de nada do que fiz, desde que nasci até hoje!“ Realmente isso é motivo de muita alegria e suprema felicidade.

Quando nascemos nossa vida é uma página em branco. A partir daí começamos a nossa trajetória. Se choramos é porque queremos alguma coisa ou sentimos que alguma coisa nos incomoda. Se rimos e dormimos tranquilamente é porque tudo está bem e então seguimos apenas o período do nosso crescimento e desenvolvimento físico como seres vivos.

Quando menos percebemos estamos abrindo os olhos para a vida. Sabemos quem são nossos pais e reconhecemos os nossos irmãos. Começamos, então, a perceber a vida em nosso derredor e assimilar a cultura do nosso meio em que vivemos. Ainda não há sonhos e projetos futuros, apenas desejos de ter este ou aquele brinquedo que vimos em algum lugar e na mão de outra criança da nossa idade. Começamos então a conhecer e dar importância às informações recebidas e às ferramentas que nos ajudarão a vencer ou facilitar a nossa vida.

No seio da nossa família e nas interações com as crianças da nossa idade e do nosso meio, aprendemos a maneira como devemos conduzir a nossa própria vida. O trabalho, as obrigações, a convivência e os nossos divertimentos.

Quando eu era menino, no tempo e no meio em que vivíamos, era cultura popular e todos sabiam que os meninos, desde a mais tenra idade, poderiam ter aquela arma infantil chamada “estilingue,” quase obrigatória em todos os bolsos dos meninos daquela época. Saber atirar e acertar o alvo dependia da freqüência e assiduidade nos treinamentos feitos com aquela arma.

Mas, para treinar e acertar, o alvo eram os passarinhos. Todos sabiam que não poderiam matar: beija-flor, corruíra e “passarinho saci.” Os demais poderiam matar, desde que os comêssemos. Não poderiam matar apenas por matar e, se matassem um passarinho, deveriam comê-lo.

Essa distração e divertimento dos meninos era a cultura daquela época. Caçar e matar passarinhos com o estilingue que cada um tinha sempre à mão.

Cada passarinho morto era assinalado com um corte ou “pique” no gancho do estilingue e um gancho cheio de cortes significava que ele era muito bom e por isso era maior o seu valor. Essa era uma cultura que demonstrava a esperteza dos meninos da roça quando tentavam enganar um menino da cidade. Por incrível que pareça, os meninos da cidade acreditavam nesse argumento e as operações de venda ou de troca eram bem sucedidas.

Em conseqüência de tantos treinamentos e prática constante, tornei-me exímio atirador com o estilingue. Passarinho que se apresentasse à minha frente não viveria mais. Era tamanha a certeza da pontaria que, às vezes, não tinha a menor dúvida quando algum colega da escola me encomendava um passarinho para o dia seguinte.

Dessa confiança em minha pontaria, lembro de alguns acontecimentos que nunca mais esqueci. Primeiro foi quando íamos para a escola e, no meio da estrada que percorríamos todos os dias, uma cobra “jaracussu” ficou parada no meio da estrada por onde deverímos passar. O medo e a possível falta de tempo para encontrar um pau para matá-la encheram-me de coragem para dizer: - Deixa que eu a mato com o estilingue.

Os quatro meninos que me acompanhavam todos os dias para a escola riram e debocharam da minha afirmação. Mas, sem outra alternativa, para o momento, concordaram. Ainda com muito medo e pensando que não poderia errar, escolhi do bolso uma pedra ajeitada e a disparei em direção à cabeça da cobra. A pedrada foi certeira e atingiu exatamente a cabeça da cobra que apenas deixou cair a cabeça e morreu. Foi uma alegria imensa e, daí em diante, todos acreditaram na minha pontaria.

Outro fato ocorrido foi quando, em um tanque em que minha mãe lavava roupa e onde havia muitas rãs, minha mãe que tinha muito medo desses animais inofensivos, começou a gritar e dizer que havia um desses animais naquela água. Meu pai que estava em casa e assustado com o berreiro da minha mãe, correu para o local com sua velha garrucha de chumbo. Deu três tiros e errou todos, pois a “bichinha” novamente apareceu.

Até ali meu pai detestava que eu tivesse estilingue, pois na sua cabeça, andar com estilingue era coisa para menino vagabundo. Então era a hora de eu provar exatamente o contrário do que pensava meu pai. Disse-lhe que ia matar a rã com o meu estilingue. Meu pai riu e disse: - "Mata então que eu quero ver.” Com toda a confiança em minha pontaria, com uma pedra mirei bem na cabeça da rã e disparei. A coitada, tendo a cabeça esmagada pela pedrada, apenas virou com a barriga para cima e morreu. Minha alegria então foi intensa e, desde aquele dia, nunca mais meu pai se importou com o meu estilingue.

Além desses dois fatos, um dia um dos meus amigos de minha idade e que se julgava bom de estilingue me fez um desafio:

- Amanhã vamos tirar a limpo e ver quem é melhor na pontaria: eu ou você! Aceitei o desafio e combinamos de onde e à que horas partiríamos e onde nos encontraríamos, ao “meio dia”, para conferirmos e ver quem era o melhor.

Na hora e local combinados, fizemos a conferência da quantidade de passarinhos mortos que estavam no embornal de cada um. Querendo demonstrar a sua superioridade disse o meu adversário:

- Primeiro eu conto e mostro os meus passarinhos e, depois, se ainda houver necessidade, você mostra e conta os seus. E assim foi. Mostrou e contou os passarinhos que somaram 14 e me disse: - Nem precisamos conferir os seus, ao que lhe respondi, no mesmo tom: - Engano seu. Vamos contar os meus.

Sob o olhar incrédulo que contava as minha vitimas, contamos, juntos, 23 passarinhos do meu embornal. Sem acreditar no que via, disse apenas: - Você venceu!

Mais tarde, logo após ter entrado para o Seminário, vendo-me um colega com o meu estilingue na mão, perguntou-me:

- Você é bom de pontaria?

- Mais ou menos, respondi-lhe.

- Então vamos fazer uma aposta. Vou colocar cinco bolinhas de vidro no chão e em carreira, a uma distância de seis metros daqui. Se você acertar as cinco bolinhas, de maneira consecutiva e sem errar nenhuma, dou-lhe cinco cadernos.

Aceitei a aposta e fui destruindo, uma a uma as bolinhas. Quando acabara de acertar a quarta bolinha ele me disse:

- Pode parar. Dou-lhe os quatro cadernos que você ganhou. Então lhe respondi:

- Não precisa me pagar caderno nenhum, pois isso, para mim, foi uma brincadeira.

Ainda hoje, tanto tempo passado, tenho ainda grande facilidade com o estilingue, em que pese a má qualidade da borracha hoje misturada com plástico que diminui em muito a sua elasticidade e a qualidade da pontaria.

Mas, depois de todos estes fatos, voltemos a refletir sobre a gravidade e a possível culpa em matar passarinhos. Não há dúvida alguma que essas histórias contadas hoje, com certeza, provocariam o maior escândalo, repulsa e condenação por parte dos ouvintes. A preservação e o cultivo do amor à natureza estão hoje impregnados em todos nós. Falar hoje em matar passarinho é incorrer até em pena de reclusão, conforme prevê a legislação vigente.

Se hoje alguém me perguntasse se tenho algum arrependimento por ter matado tanto passarinho, minha resposta seria apenas uma:

- Não, porque naquela época era muito natural esse procedimento e era a maneira inocente de os meninos se divertirem e, além de tudo, não tinha o conhecimento que tenho hoje.

Graças a esses conhecimentos que tenho hoje e nas informações em que acredito e vivo segundo essas informações, me parece quase inadmissível que eu tenha cometido tamanha maldade. Sinto ter cometido, convictamente, tamanha barbaridade, mas, arrependimento, não tenho nenhum.

Narciso de Oliveira
Enviado por Narciso de Oliveira em 05/03/2009
Reeditado em 17/08/2010
Código do texto: T1470258