Quando meu pai anunciou a mudança, sinceramente não gostei. Morávamos em São Cristovão, um tranqüilo subúrbio do Rio de Janeiro e iríamos para uma outra rua no mesmo bairro, que ostentava o nome de um General: Cordeiro de Farias, antiga Jaraguá, distante do antigo local, uns bons dois quilômetros. . As explicações paternas para o que eu entendia como um completo absurdo eram até justas. Precisávamos desocupar o local, o dono do imóvel exigia. O filho dele ia casar e queria morar lá. O novo apartamento recém adquirido pela família não estava pronto. Portanto... . Os motivos da minha revolta também eram justificados. Deixaria de encontrar sempre à mão, os meus amigos, o campinho de futebol, a lourinha de tranças e sardenta, etc., etc. Alguém discorda que um menino de oito anos tem os seus compromissos e que seu círculo de amizades que não se pode romper?

Amuado ou não, mudei. A rua era feia, meus novos amigos eram apenas companheiros de brincadeiras. E, não havia nenhuma lourinha de tranças e sardenta. Porém, o pior de tudo era que o prédio estava cercado por todos os lados por um verdadeiro monstro que ocupava todo o quarteirão: uma fábrica que dia e noite exalava um cheiro incrivelmente ruim. O prédio pertencia aos donos da fábrica e tinha sido morada de alguns funcionários mais antigos, que acabaram se aposentando e indo para outros lugares. Os novos empregados nunca se interessaram em morar perto do local do trabalho.

Para compensar a trauma da hedionda mudança, meu pai presenteou-me com um cachorrinho, que o bom filho de italiano aqui resolveu batizar de Garibaldi. Gariba, como acabei por chamá-lo era fruto de uma pulada de muro de um pastor alemão com uma cadelinha sem eira, nem beira, mas com muito charme para atrair alguém de tão nobre raça. Pesei os prós e os contras e acabei concordando que tirara algum lucro em morar na rua do general e da fábrica. Garibaldi ou Gariba era o primeiro cachorro. Naquele tempo ter cachorro em apartamento não era tão pecado assim. Nenhum síndico mal encarado esbravejava com um pobre menino por ter um amigo peludo que latia minuto sim, minuto também, incansável. Para suavizar a situação de um animal no apartamento, esclareço que morávamos no andar térreo e nos fundos um quintal imenso era o local destinado para os afagos com meu cão.

Só encontrei uma justificativa para os latidos nervosos: os cães possuem um faro incrível. Só poderia ser uma forma de protesto pelo cheiro desagradável multiplicado por dois ou até por três, para as suas potentes narinas. Meus traumas em ser dono de um cachorro não paravam por aí. Nas ruas, espalhava-se o terror na forma de uma pequena camioneta popularmente chamada de “carrocinha”. Sua função era prender todo cão sem dono, sem coleira, fosse ou não fosse vira-lata. Uma caçada sem trégua imposta por homens trajando um uniforme amarelo berrante com o dístico: ”SAÚDE PÚBLICA”. Execráveis seres sem um pingo de humanidade, que não esmoreciam nem com choro de criança, nem com súplicas femininas. Perseguiam e prendiam sem dó os enjeitados animais. Havia uma polêmica na época. Para onde levavam os cães depois de serem presos? A lenda dizia que eram entregues para serem aproveitados como matéria prima de produtos que serviam para a higiene e limpeza. Para evitar maiores transtornos, além da coleira, Gariba desfilava com uma papeleta que meus garranchos infantis produziram. Nela constava um “pertence” em letras garrafais, seguido de meu nome e endereço. Carrocinha nenhuma no mundo ousaria pegá-lo. Aos poucos fui transformando companheiros em amigos e substitui tranças de cabelos louros e sardas por uma moreninha com um sorriso de covinhas e cabelos encaracolados. As únicas coisas realmente desagradáveis eram aquele odor nauseante e o mais novo temor infantil: alguém havia jurado que a maléfica carrocinha lotada de cachorrinhos havia entrado nos portões da fábrica e saído totalmente vazia. As crianças da redondeza mobilizaram-se. Formamos um exército de vigias que se revezavam dia e... Não, à noite nenhum dos heróicos e bravos vigilantes obteve permissão paterna para a empreitada. O resultado da vigília foi totalmente nulo. A questão foi arquivada na pasta dos mistérios inexplicáveis e das acusações sem provas. Acabei acrescentando nessa história toda mais uma teoria: Garibaldi latia, lamentando os seus irmãos sacrificados pela hedionda unidade industrial. Mas minha raiva e desprezo transformaram-se em ódio, quando numa fatídica quarta-feira, enquanto ajeitava o meu mascote para um passeio. Não sei o que lhe moveu a soltar-se de minha mão e disparar pelo apartamento, ganhando o pequeno corredor que servia de entrada e sair pela rua afora. Minhas pequenas e curtas pernas não foram suficientes para alcançá-lo. Naquele momento desejei ter asas para arrancá-lo do seu triste destino. O meu cachorrinho acabou sendo colhido pelas rodas de um caminhão que saía da fábrica.
- Mataram o meu cachorro! - foi o grito estridente que ecoou pela antiga rua Jaraguá. A raiva e a revolta eram grandes. Hoje, passados tantos anos, acho que deveria ter me travestido de ambientalista, portando um cartaz na entrada dela: “ALÉM DE FEDER, É ASSASSINA!” Mas defesa de meio ambiente na década de 50, tinha um toque de ficção científica. Acabei por não fazer nenhuma demonstração, apenas chorei a perda do meu companheiro.

Para tentar sufocar aquele desespero, minha mãe ofertou-me Anita, uma cadelinha que uma vizinha tirou de uma ninhada. Digamos que Anita era legal e fez de tudo para que eu esquecesse Gariba, mas confesso que foi em vão. Não dava a mínima para ela e a recíproca acabou sendo verdadeira. Num dia qualquer, ela se foi sem mais lambidas ou menos ganidos. Sua atitude provocou uma resolução: decidi nunca mais ter nenhum animal de estimação. Curtiria sozinho meu ódio e meu sentimento de vingança contra aquela fábrica monstruosa.

Diz o dito popular: “Não há mal que sempre dure.” Esta é uma verdade pura e cristalina. A prova disso aconteceu num domingo à noite. Rodeados em frente à televisão preto e branco, a família via um não sei que programa, porém por mais bobo que fosse não tinha nenhuma baixaria. Primeiro foi um forte estalido, seguido de um potente estrondo e finalizando o evento, um deslocamento de ar que estilhaçou os vidros das janelas e triturou os poucos cristais que nós tínhamos. O pânico tomou conta de todos os vizinhos. A redondeza saiu à rua para ver o que estava acontecendo. O cheiro era o mais insuportável possível. As perguntas: “O que houve?” e “O que está acontecendo?” foram respondidas por um dos vigias da fábrica: uma das caldeiras explodira e o perigo de novas explosões pairava no ar.

Fechamos o apartamento e fomos para um hotel. Pelo menos por uma noite nosso olfato não sofreria. As férias para os narizes acabaram durando uma semana, tempo da interdição do local. Quando voltamos, a boa notícia. Os donos foram intimados a fechar o recinto e transferir para outro local: a beira de uma estrada bem longe de mim e de meu olfato. A dúvida persistiu por muito tempo: toda vez que eu tomava banho, não sabia porque me lembrava de Garibaldi. Hoje isso passou...
Roberto Bordin
Enviado por Roberto Bordin em 06/03/2009
Reeditado em 06/03/2009
Código do texto: T1472140
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