DO OUTRO LADO DO MURO MORA DEUS

O pôr-do-sol no Guaíba é escandalosamente lindo. Indiferente ao branco e ao negro, à esquerda e à direita, ao Grêmio e ao Inter. Não sei se é o mais bonito do mundo, como os gaúchos cansam de afirmar aos berros por aí, só sei que é lindo de morrer. Quando eu era mais nova, seguidamente ia com meus amigos sentar na grama e tomar chimarrão na beira do rio, para assistir de camarote ao espetáculo. Agora, ainda assisto de camarote, só que VIP.

Da janela do meu trabalho, eu vejo, todos os dias, sem nada que atrapalhe minha visão, o sol se derramar sobre o Guaíba. Não raro paramos tudo o que estamos fazendo aqui na minha sala só para admirar esse momento que é, simplesmente, perfeito. É rápido, não demora dois minutos. O sol, gigante, redondo, laranja, vai mergulhando atrás dos morros e por mais que seja uma cena conhecidíssima, por mais que a vemos reproduzida de todas as formas possíveis em todos os lugares possíveis, é sempre e para sempre emocionante.

Só que existe um detalhe intrigante nisso tudo. Coisas de Porto Alegre. Entre o rio e a cidade, entre o pôr-do-sol e a cidade, entre a beleza divina e a cidade, existe um muro. Um muro de concreto, extenso, cinza, estranho. Do alto da minha janela eu vejo o sol do lado de lá e a cidade do lado de cá. Vejo milhares de carros e pessoas passando na avenida, coladinhas no muro, a um passo daquele esplendor todo, sem conseguir enxergar.

Que futuro se pode esperar de uma cidade que se esconde de Deus?

Não sei. Não sei nem se é mesmo o pôr-do-sol mais bonito do mundo! Tudo o que sei é que esse é o pôr-do-sol que eu tenho, o que eu ganho de mão beijada todos os dias no final do expediente, o que me faz sorrir encantada sem pensar nas ruas violentas e sujas que me esperam lá embaixo, o que me faz entender que Deus está do outro lado do muro sim, mas que nos espia, que nos deixa ver suas cores. Todas as cores. Escandalosamente lindas.

Mulher de Sardas
Enviado por Mulher de Sardas em 04/05/2005
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