A caixa de papelão


E diante de mim, dilacerando tudo, imagens congeladas do tempo em que eu sorria
 
O sol já entrava pelas pequenas frestas da antiga persiana, quando levantei. O amargor da boca seca denunciava que o dia seria, trabalhando com a melhor hipótese, bastante tumultuado. Em breve, muito breve, o caminhão da mudança já estaria à porta. Era preciso escovar os dentes, passar manteiga no pão, vestir qualquer trapo e, enfim, tomar coragem. Não havia mais como adiar.
 
Foi estranho levantar do colchão e lembrar que já não havia mais cama. Foi confuso olhar para frente e não ver os quadros coloridos que por tantos anos ficaram simbioticamente misturados ao cenário feliz daquele quarto de fundos. O caminho que me levava do corredor à pequena cozinha de azulejos verde abacate estava praticamente intransitável em razão de toda a parafernália que saíra dos armários e se preparava para ganhar as ruas em busca de outro espaço, outro canto escuro.  
 
O cheiro daquele lugar, suas memórias, as vitórias ali comemoradas, o velho canto da introspecção diante do sofá vermelho e ao lado do pequeno alguidar de barro. Tudo lembrava. Lembranças que não necessitavam de complementos e divagações. Lembranças e ponto. Lembranças e só.
 
Mas foi quando me deparei com aquela caixa que senti de fato o que acontecia. Recordo-me de ter pedido licença ao entra e sai de apressados homens da mudança e me retirado com a pequena caixa de papelão. Sentei-me mal acomodado na pequena área anexa à lavanderia e pus-me a retirar o que de dentro dela havia.
 
Vi olhos de criança, meus olhos, enfim, sorrindo para a fotografia. Vi a juventude desbotada em sépia e senti os abraços do retrato. Apertados abraços de pai e mãe. Como era linda minha fantasia de pirata. No fundo da caixa a caderneta escolar denunciava péssimas notas em ciências e estudos sociais. Menos mal que em matemática havia me saído tão bem. Em letras vermelhas, letras de forma, uma anotação que jamais me saíra da cabeça e que, de certa forma, ali me reencontrava, finalmente orgulhoso: suspensão! Dois dias longe da sala por ter colocado o apagador em cima da porta.
 
Cartas de amor. Talvez mais. Não em contundência, mas em quantidade. Cartas de amores. Amores de verão ou inverno, pouco importava, amores necessários, amores que forjaram em brasa muito do que sou. Ou do que era àquela manhã. Amores possíveis que não foram e amores que foram impossíveis. Pouco importava o amor e suas indefectíveis promessas. Promessas de amor, provas de amor. Corações vermelhos em envelopes bem acabados. Nada me disseram ali, naquele piso frio. Às vezes o amor prefere mesmo o silêncio. Quem, enfim, há de condená-lo?
 
Numa antiga fita cassete, irremediavelmente embolorada, a listagem do que ouvia. De nada mais gostava. Talvez por isso ela estivesse ali, entre velhas fotografias e palavras aprisionadas. Música dos anos 80. Sorri da cena que não vi, exatamente por interpretá-la: um homem a cantarolar fragmentos do passado no meio de tanta coisa a consertar. Pensei em fechar a caixa. Havia de verificar o registro da água, apertar torneiras, desligar disjuntores.
 
Mas enquanto acomodava tudo aquilo de volta à caixa e questionava-me a razão de fazer questão de manter registros cada vez mais distantes, fui espetado. Como que querendo dizer algo, um antigo pião, colorido e enferrujado, pediu para deixar a caixa. Não sei se também pediu para ser girado, usado, lembrado. Disso não recordo.
 
Recordo apenas que as voltas do antigo pião ainda formam imagens em minha cabeça, confortando como bálsamo, toda vez que a vida insiste em fazer girar algo que queremos estanque, nosso, eterno.