Crônica Doméstica

CRÔNICA DOMÉSTICA

Escrever é um quase sair de si. E digo quase porque quando me sinto quase solto, a Marcela irrompe e me devolve à dureza da cadeira. O poema estanca, a idéia reticencia, a crônica empaca feito burro e eu acabo escravo dos dizeres e afazeres domésticos. Consciente da total impossibilidade de opor resistência, deixo-me zanzando pela casa, remexendo coisas e efetuando as tarefas que me vão sendo sugeridas. Tapetes são erguidos e levados à área para escovação. Somem cadeiras e almofadas. A vassoura remove o grosso e deixa ao aspirador a tarefa de vasculhar pequenas coisas que escapam do rude poder das piaçavas. Quanto ao poema, jaz esquecido para sempre. Decididamente, o ato de escrever não cabe em uma casa com densidade demográfica superior a um, pois os apetrechos que acompanham o referido ofício costumam ser vistos como um incitamento à desordem e, portanto, ato de insubordinação. Velhos dicionários espalhados, cinzeiros em desalinho, xícaras de café empilhadas. Tudo isso parece incomodar a estética da sala arrumada e não passa incólume aos olhos atentos da mulher atarefada. Apenas a Marrenta parece não notar aquilo e deixa-se ficar esticada a um canto.

Nem bem o primeiro parágrafo termina, esgotado pela miríade de palavras que se apresentam solícitas, e já não pode continuar. Protestos ensurdecedores oprimem-no. Quanto a mim, e é de mim mesmo que se trata, procuro contornar a situação. Levanto, bebo água, lavo a pouca louça que usei e negocio em bases nem sempre muito boas. De minha trincheira, procuro avançar em meu intento mas, infelizmente, tarde demais. Uma verdadeira passeata invade a sala a exibir-me cartazes virtuais: QUE BAGUNÇA! E SE CHEGAR ALGUÉM DE REPENTE? POR QUE NÃO VAI PARA A RUA? Então desisto. Recolho as coisas, deponho as canetas e recolho os cinzeiros. Perdida a batalha mas não a guerra, reuno forças e bato em retirada.

-Vou lá no Costa! Digo enérgico.

Mas antes que eu cruze a porta e ganhe a escadaria que me leva ao bar, uma voz vinda do quarto sugere-me numa quase ordem:

-Vai, mas leva a Marrenta!

Aldo Guerra

Vila Isabel, RJ.

Aldo Guerra
Enviado por Aldo Guerra em 30/04/2006
Código do texto: T147807