Crônica do milagre


Tenho uma inegável predileção por escrever sobre a miserável condição humana. Poderia dizer que o faço por inúmeras razões. Seria casuísta se dissesse que é por causa da necessidade que nós, simples mortais, temos de perceber o quão pequenos somos. Soaria como engodo se afirmasse, por exemplo, que a adrenalina desse tipo de escrita funciona como uma droga. Besteira. Para que mentir? Acho que não há razão para escamotear: essa verve mesquinha, pequena, gutural, tragicômica, que permeia (ou deveria, em intenção) pequenos textos sobre os quais debruço, só tem uma razão: não acredito em milagres.  Um tiro seco perfurando o crânio, um facão enferrujado brigando para perfurar a derme... Isso sim, isso existe. Jornais populares estampam diariamente, geralmente com manchetes irônicas ou de duplo sentido. Sabem o quê? Poucas frases retratam tão bem o que quiseram dizer, como a que Nélson Rodrigues cunhou para representar tanto do que escreveu. A vida como ela é. E isso é atemporal. Nem adianta lamentar.
 
Esse enfadonho intróito serviu apenas para ser sumariamente desmoralizado. Artifício canhestro de gente que escreve sobre o óbvio. Vão o intróito e todos os seus dogmas ao banco dos réus. Pior! Serão colocados nus, sobre um palco iluminado no alto do convento carmelita.
 
Milagres existem. É isso mesmo. Existem!
 
Quem há de duvidar?
 
Meus caros, sou do tempo das provas, do ‘preto no branco’. Acredito em discos voadores se me comprovarem por “a” mais “b” que aqueles objetos esquisitos não foram produzidos pelo governo soviético ou pelos estúdios da Disney. Acredito em Rainha de bateria de escola de samba, em notas de jornal, em tarô cigano, em deputado federal, em vida após a morte. Mas tem que ter prova. Morreu? Voltou? Mostra a língua. Agora fala ahhhhh! Deixa eu ver... Lembra de cor o número de sua identidade? E por aí vai. Se convencido, dou o braço a torcer. Não sou apegado a intransigências.
 
Mas milagre, milagre mesmo, nunca tinha visto. Até hoje cedo. Uma pena, lamento informar. Milagres necessitam de alguma eloqüência! Monte das Oliveiras com algum vento, uma horda de maltrapilhos aleijados. Basta um toque de cajado... Vão!
 
O que vi, apesar de milagre, foi bem sem graça, bem chinfrim. Mas foi milagre, pombas! O que mais quero?
 
Escovava os dentes - toalha enrolada ao corpo - e ao mesmo tempo mudava os canais da televisão. Cedo da manhã, antes de comer alguma coisa.
 
O bispo – de terno caramelo – apenas empunhava o microfone. Quem falava era ela. Ela ou ele. Não sei ao certo se demônios têm sexo. Falava, não, grunhia. Grunhia e suava. Grunhia, suava e olhava de soslaio para a cara do pastor.
 
De repente, antes dos comerciais, o milagre! Um jogo de corpo, um despretensioso desabotoar do último botão do terno, uma cara de poucos amigos e, finalmente, a acachapante mão direita sobre a cabeça do ‘cramulhão’ (a esquerda ainda segurava o microfone). Aparentemente foi só fazer um pequeno esforço nos dedos da mão, uma pequena contração muscular, e entoar algumas palavras que já não me recordo mais. Coisa boba, coisa simples.
 
Cadê o diabo?
 
A moça começou a chorar e suas feições foram aliviando, aliviando, aliviando... Os olhos voltaram ao normal e eu fiquei com cara de idiota.
 
Durante todo o tempo – e olhem que havia um milagre em curso – duas coisas estranhas aconteceram: bastante pasta de dente caía sobre o piso do quarto e números de agência e conta bancária piscavam na tela.
 
Não sei ao certo se são coisas afins, mas achei de bom alvitre registrá-las para averiguação. Admito a idéia de que queiram checar se o que falo procede.
 
Afinal, entendo perfeitamente o fato de que nem todos são bafejados pela sorte de se deparar com algo assim.
 
Eu - que fui ! - saberei reconhecer. Miserável condição humana?
 
Não! Nunca mais.