Tudo pela relação

Fazia tempo que ele não se sentia tão mal. Aquilo que via em filmes e novelas, quase aconteceu com ele, talvez por influência dos escritores e roteiristas, – a vontade de vomitar. Chegou a comparar a situação ao nível de uma traição, de uma infidelidade. Sua mulher agira como o inimigo que abandona a ética, apenas para humilhar, tripudiar, deixar o desafeto aniquilado. Ele estava de licença do trabalho e naquele início de tarde se encontrava em uma biblioteca pública, onde aproveitava para redigir suas correspondências, mensagens, anotações, comentários e ler, uma das coisas que mais gostava de fazer, desde a mais tenra infância. Ali podia ler os mais belos contos, poesias, filosofia, tratados, fatos históricos, o pensamento da humanidade e outras informações que sempre o deixavam em deleite. De repente seu celular toca. Era sua mulher, tendo ele levantado de onde estava e se afastado até à porta, o ponto mais distante de onde se encontravam outros leitores. Queria ser discreto, não incomodar os demais usuários daquele serviço, absortos também em suas leituras ou pesquisas. Ela perguntou onde ele estava e ele mentiu, dizendo que se encontrava no lugar onde estivera meia hora antes, com um amigo que ela sabia que ele iria procurar naquele dia. Mesmo que não estivesse cometendo nenhum crime e nem se conduzindo de forma inconveniente a causar danos a terceiros, ocultou o que realmente estava fazendo. Agiu assim para não ter que apresentar repetidas desculpas a ela diante de suas ácidas críticas, que de certa forma queria que ele estivesse fazendo algo mais produtivo, mais objetivo, mais ao gosto dela. Pela forma como sua mulher agiu ele imediatamente concluiu que alguém o encontrara ali e dissera para ela seu verdadeiro paradeiro, ou mesmo porque aquela biblioteca ficava no mesmo bairro em que moravam. Bem, mas quando chegasse em casa saberia. E caminhou de volta a sua cadeira e ao livro que lia antes da chamada. Diz o velho ditado que a mentira tem pernas curtas e que notícia ruim corre como o vento e a gente logo logo fica sabendo. Um conhecido dele, que também fazia uso daquela biblioteca, saíra momentaneamente para fumar na rua e quando ele acabara de desligar o telefone o tal conhecido estava retornando ao salão, tendo então perguntado por que sua mulher, com que já vira junto outras vezes, não quis entrar ali, preferindo telefonar de fora, mas tão perto? Hã, ele ainda tartamudeou por alguns segundos, mas logo se refez. Entendeu e imediato que sua mulher ao passar por ali, vendo seu carro estacionado na calçada, conclui que ele estava ali de novo. Poderia ter seguido seu trajeto, mas resolveu tirar a coisa a limpo, certa, quem sabe, de que seu marido iria mentir. E, pelo sim, pelo não, resolveu testá-lo e apanhá-lo na mentira. Ele resolveu “esclarecer” a dúvida de seu confrade da biblioteca, dizendo baixinho que ela não suportava uma das bibliotecárias, por isso não quis entrar, cumpliciando aquele segredinho tolo com uma rápida piscadela, encerrando o diálogo de ocasião e indo sentar-se. O outro entendeu, ou fez que entendeu e sorriu, caminhando para sua mesa. Bem, em seguida, ele já sentado à mesa em que estava, com um livro nas mãos, sentiu vontade de vomitar. Se sentiu mal porque a sua mulher poderia entender, tolerar aquele vício e não deixá-lo como um menino apanhado com a bala nas mãos que acabou de tirar sorrateiramente da bomboneira. Pensou em várias alternativas de desforra ao comportamento de sua mulher, pelo menos censurar com veemência aquela conduta quem sabe observada por outras pessoas que estavam no palco dos acontecimentos e que poderiam fazer mil e uma conjecturas. Iria despejar seu aziúme quando chegasse em casa. Mais tarde, já próximo a voltar para casa, ele ponderou e resolveu que aturar essas atitudes, de certa forma abjetas, faz parte de levar em frente uma relação a dois. E nem tocaria no assunto se não fosse provocado. E se fosse, permaneceria calado e engoliria o sapo, pois, apesar de tudo ela a amava. Tudo pela governabilidade! – como dizem alguns políticos quando decidem aturar os desaforos e pecadilhos do governante. Tudo pela relação que ansiava como prometida na aliança.