Pronto!

Não sei o que me aconteceu quando decidi deixar aquela vidinha irresponsável de menino de roça para ir estudar em Cordeiro. Deus do Céu! Era longe demais! Quarenta quilômetros!

Quando meu pai perguntou-me se queria, respondi de estalo que sim e ele me adiantou que eu faria o curso ginasial, depois o científico e por último, medicina. Não me deu opção de escolha quanto a minha futura carreira, e terminou profetizando uma verdade, para ele, incontestável:

- Pronto! Você "está" feito!

Avalio hoje que aquela conotação significava estar rico em pouco tempo, não ter mais nenhuma preocupação quanto ao futuro, pois os médicos eram considerados pessoas de posse, de dinheiro fácil, compradores de fazenda, gado, carro, todas essas tolices materiais. Eu, não! Vi-me como um daqueles quase-deuses, como Dr. Brás, Dr Hermes ou Dr. Maneco. Assim os via: enormes, iluminados, sobre-humanos e os deveria olhar de baixo para cima; não só pela estatura, mas também pela sua magnificência.

Chamar o médico para visitar um doente era a última coisa que uma pessoa doente desejava, pois na região era um sinal inequívoco do término inexorável da caminhada. Então, primeiro tentavam-se chás de muitas ervas, emplastos de saião com sal grosso, cataplasmas, ventosa, banho de arnica, benzedura da Sá Evira, simpatia, farmacêutico e por último ele, o doutor.

Se a decisão fosse tomada, buscava-se também reforço no sobrenatural e se partia para as promessas, queima de palha benta, sal grosso no fogão à lenha; rosários eram nervosamente dedilhados nas mãos tensas e baixava nos parentes um mal-agourado semblante de depressão. Ambiente pesado! Mas depois da sua chegada as coisas começavam a melhorar, já se notava um sorriso, amarelo sem dúvida, mas percebia-se uma aura melhor, ou, quem sabe? Para o doente não achar que a coisa estava preta demais.

Ele entrava no quarto e quase todo mundo ia junto. Quando se esqueciam de mim, furtivamente, ficava lá também observando aquelas manobras do exame, mas se descoberto era alijado. Criança nunca tinha direito a nada dessas coisas. E não havia nenhum trauma por causa disto. Éramos educados assim.

Terminando ali, ia para a mesa da sala. A gangue toda atrás. Explicava coisas das quais eu não entendia patavina, mas o que me empolgava mesmo era vê-lo escrever a receita e assinar com suas letras incompreensíveis.

Normalmente voltava ao quarto para dizer umas palavras de ânimo ao infeliz doente e depois alguém derramava a água morna daquele jarro mais bonito em suas mãos por sobre a bacia de porcelana sempre guardada com carinho para aquelas ocasiões. Então ele as secava numa toalhinha de linho muito branca e caprichosamente rendada. O quase-deus saía, a esperança retornava e aquele ambiente negativo lentamente ia voltando ao normal.

Parti, então, em busca do meu “Pronto!”. Até o vestibular a coisa foi mole. Aí pegou! Estudava no interior e me metia no meio das feras que frequentavam cursinho o ano todo. Primeiro ferro no Badini! No ano seguinte fiquei lá, mas o dinheiro curto, atrasando o pagamento da pensão, o dono cobrando... Apareceu uma oportunidade para lecionar no interior e me mandei. Vestibular em fevereiro: segundo ferro no Badini!

Desisti! Voltei para o interior e fui lecionar em vários colégios. Vou me preparar para concurso no Banco do Brasil ou então fazer os exames de Suficiência na Fundação Getúlio Vargas, em Nova Friburgo, e ser professor de verdade.

Mudei de ideia. Iria tentar mais uma vez. Voltei em julho e Badini mandou ferro neles! Em março eu estava estudando medicina na Praia Vermelha. Agora é fácil, diziam muitos, era só esperar passar os seis anos e... Pronto! Mais uma vez ouvi aquela exclamação. Não foi assim tão fácil; foram mais seis anos duros, correndo atrás.

No final do quinto ano casei-me com Isa que me esperava há nove anos. Queria que ela participasse e me ajudasse a receber o meu “Pronto!” prestes a chegar. Dezembro de sessenta e seis, formatura no Municipal; PH, nosso orador, mandando a vara nos militares, boato do DOPS presente para prender todo mundo, tensão, volta para casa, alegria misturada com cansaço, um pequeno e passageiro susto. Mas minha mãe presente e que já passara seis vezes por aquela situação acalmou Isa porque nosso filho fizera seus primeiros movimentos naquela noite, como se nos avisando:

- Hei! Esperem! Tô nessa! Quero estar junto!

Acho que com tudo isso acontecendo o meu “Pronto!” assustou, acovardou-se, saiu em desabalada carreira e sumiu. Nunca mais o vislumbrei. Nunca mais tive contato com o que me parecia ser a tábua da salvação. Sacana!

E eu e Isa fizemos o que melhor pudemos ou julgamos ter feito para apoiar Luciano, Mércia e Carmela a buscar o “Pronto!” deles. E somos uma família unida e feliz!

Depois de quase quarenta anos, percebo ao longe o meu “Pronto!” achegar-se de mim. Como um cãozinho vadio, fujão, eu o vejo rabinho entre as pernas, com cara de humilhado e com aqueles olhinhos suplicantes a me observar de baixo para cima, arrependido.

Não quero saber dele agora. Eu e minha Isa, lado a lado, de mãos dadas ou abraçados, ancorando um ao outro na mútua ajuda para galgar um obstáculo mais difícil... Nós iremos em frente!

Caminharemos na direção do sol nascente. Seus raios matinais e saudáveis iluminarão nossa fronte, o nosso resto de caminho e colocarão lá para trás, disforme e retorcido, o negrume das nossas sombras e tudo o mais que, de uma forma ou de outra, não pudemos, não quisemos ou não soubemos fazer. Nós iremos em direção da luz. Nós iremos até aonde Deus quiser.

Pronto! Agora sim: estaremos feitos!

Dbadini

Dbadini
Enviado por Dbadini em 29/03/2009
Código do texto: T1512142