Tomate?

 
 
Passou-se na feira. Tem tempo! Mais precisamente, décadas. Não sei dizer se ela ainda está lá, mas antigamente, na esquina da Ataulfo de Paiva com o General Urquiza, no Leblon, tinha uma adorável feira na qual eu às vezes matava aulas entre barracas de verduras e biscoitos amanteigados. Tudo era melhor do que lições de matemática.
 
Curiosamente lembrei-me agora, enquanto mexia num papel pardo, desses que utilizam pra fazer envelopes. Desde já adianto: nada tem a ver o papel pardo – quiçá os envelopes – com a lembrança que me ocorreu. Quem há de entender os meandros de nossas cabeças?
 
À Crônica.
 
Barraca dos tomates. Acho que posso assim denominá-la, pois não havia mais nada a ser vendido. Nem pés de alface, nem dúzias de laranjas. Só tomates. Vermelhos, maduros, redondos.
 
- O senhor vai levar tomates?  
 
O feirante, todo de branco, com aquele formidável chapéu na cabeça e indefectível sotaque patrício, aparentava certamente mais de sessenta anos e pouquíssima paciência com a cena à sua frente.
 
Encostado na beirada de madeira que separava os tomates da queda livre em direção ao chão, outro senhor mais ou menos na mesma faixa etária aguardava que seu cachorro – um portentoso ‘pastor alemão’ - terminasse sua sesta à sombra fresca da barraca do português, enquanto folheava, calmamente, o segundo caderno do jornal que tinha em mãos.
 
- Não, muito obrigado.
- Pois então eu te digo que tu tens que deixar livre a entrada de minha barraca.
- Como assim, meu senhor? Sua barraca está na rua. Não há entrada.
- O que estou a dizer é que o senhor e esse seu cão estão a impedir que minhas freguesas escolham os tomates.
- E o que eu estou a dizer é que eu estou em pé, na rua onde moro, lendo meu jornal e sem qualquer intenção de levar tomates ou sair daqui.
- O senhor saiba que eu pago autorização à Prefeitura e tenho direito a vender meus produtos na feira.
- Que ótimo. Agora com licença que eu quero terminar de ler meu jornal.
- O senhor está me ofendendo. Eu vou chamar a polícia. Ô menino Adalbertinho, vá ao orelhão e disque para a polícia! 190. Fale que tem um senhor a arrumar confusões na feira.
 
- Quanto custa a manga?
- Cem cruzeiros o lote com seis.
- Não, eu só quero uma.
- Dá vinte cruzeiros.
- Toma. Vem cá, diz uma coisa, esse ‘portuga’ aí é bravo?
- Ih! Rapaz. É gente boa demais. Mas é invocado que só. Isso ai não vai acabar bem...
- É, É? Faz duas por trinta?
 
Estava com fome e não podia sair dali antes do desfecho. A aula de matemática, ou de geografia, ou de história, que esperasse.
 
Enquanto todos aguardavam a chegada da viatura que Adalbertinho havia solicitado, fui tomado por uma sensação de leveza, tranqüilidade. Uma doce harmonia tomava conta dos meus sentidos. Aquela discussão estava deliciosa de ser vista por um menino recém saído da barra da saia materna. Afinal, Era, de certa forma, uma acalentadora constatação de que infantilidade não concernia apenas à crianças
 
Vi o fusca da PM dobrando a esquina. Chegada providencial. A feira havia parado. As ‘freguesas’ cochichavam, o senhor da barraca do peixe foi pedir delicadamente para que tudo se resolvesse, os porteiros (obviamente) largaram seus postos. Um circo. Dos grandes.
 
E o feirante lá, roxo de tanta ira, reverberando contra o povo, o governo, a revolução dos cravos, a derrota do Vasco. Nada que fizesse o dono do cachorro – que por sinal nem dava indícios de que levantaria – deixar de ler calmamente as páginas dos classificados.
 
- O que que houve aqui? Que bagunça é essa? A voz, num tom acima do ‘homem médio’, obviamente era do policial.
- Esse senhor criou raízes aqui - justo aqui! - diante de minha barraca e eu estou a ter prejuízos porque freguesa nenhuma consegue se aproximar com essa fera aí de baixo.
- É um cachorro dócil, policial.
- O senhor não pode levar esse cachorro dócil para outro lugar?
- Certamente, policial, mas não quero fazer isso. Esse senhor foi de uma prepotência singular.
- O que estás a falar, ô seu arrogante? O senhor está a estragar meu dia. Meu dia! Meu dia! Ó minha N. S. de Fátima! Tire daqui esse homem, seu policial! Tire ele daqui, porque senão eu sou capaz de cometer alguma loucura!
- Por favor, senhor, ele tem razão! O senhor tem que tirar esse cachorro daqui.
- Deixe-me apresentar, soldado (tirou do bolso uma carteira qualquer): Coronel Teotônio, sou colega de vocês.
- Coronel... Bem, Coronel... Quer dizer... Bem... O senhor garante que esse cachorro é manso?
- Não faz mal a nada, Não morde ninguém, né, Rin Tim Tim? É uma preguiça só... Olhe... Manso, manso...
- É. Neste caso, o senhor realmente vai ter que esperar que o cachorro levante.
- Como? O quê, homem? Vou esperar o quê?
 
Tomates começaram a voar. Meus olhos se arregalaram. Tomates arremessados pelo feirante para todos os lados e direções. Adalbertinho aderiu.
 
Obviamente os primeiros frutos atingiram com alguma força a camiseta branca do Coronel, respingando na farda acinzentada do policial que, em instantes, também estaria todo melado.
 
O povo, imbuído de raro sentimento de justiça, comprou a briga e também arremessava tudo, de todas as texturas e tamanhos. Os demais comerciantes pareciam ter esquecido dos seus lucros, perdas, preços e mercadorias. 
 
Só não vi voar peixe. O resto, de melancia a maços de arruda e ervas milagrosas, eu juro que vi.
 
Acho que teve voz de prisão, completamente abafada pelo barulho da multidão enlouquecida e pelos latidos do Rim Tim Tim que, enfim, acordara.
 
Enquanto levavam o feirante português – contrariado – ao hospital, o policial, acuado e mal remunerado, buscou refúgio em uma das portarias em frente à feira. Já o Coronel limpava-se com o que sobrara do jornal e vociferava contra a multidão, mesmo debaixo de uma sonora vaia e sob o alvo de um ou outro legume que ainda lhe era arremessado.
 
Em instantes tudo voltaria ao normal e aquele pedaço do Rio de Janeiro continuaria sendo apenas uma esquina qualquer do Leblon.
 
Na minha vida, porém, havia sido um marco. Daqueles dignos de estátua e data comemorativa: o dia em que, com ameixas e mangas, enfrentei a polícia e o exército.