Fitava a parede branca em frente de olhos seguros num ponto ou talvez numa área de determinadas dimensões. A atenção não se perdia para além do estuque mas permanecia nesse plano com determinação.
O corpo, carente de água, evidenciava a débil nutrição que o abalava. Os cabelos pendiam com dificuldade de tão embaraçados que estavam. A respiração era calma e lenta.
Estava imóvel há várias horas. De olhar pregado na parede branca. Sentada no sofá.
A voz não saía há vários dias. O silêncio havia tomado conta do compartimento.
As mãos, no final de dois braços que pouco mais eram que ossos, estavam tensas. Pousadas nas coxas pareciam prontas para o ataque. As unhas pareciam garras em jeito de ameaça. Os olhos estavam lúcidos. Firmes. Obstinados na parede branca.
A malga da sopa arrefecia na mesa de apoio. Havia ficado de véspera a azedar.
O rosto lívido desmascarava-se em múltiplas rugas recém formadas. As pupilas dilatadas concentravam-se na parede branca. Retidas.
A imobilidade do tronco não deixava transparecer qualquer pensamento. As pernas pendiam para o chão de modo que os pés apenas lhe tocavam com a ponta.
Os olhos, invariáveis, cravavam-se na parede branca.
As costas hirtas denunciavam o alerta do espírito.
O odor da sopa levemente azeda evidenciava-se do cheiro a suor velho que invadira o quarto.
Talvez por isso, lentamente, os olhos viajaram da parede branca para a tigela.
Ou porque se lembrara que naquele dia distante havia comido sopa.
No dia em que a filha partira. Sem saber porquê nem para onde.
AnaMarques
Enviado por AnaMarques em 14/04/2009
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