Meu coração está num pedaço de chão

Vivi toda a minha infância num pedaço de terra que não era nosso. Pertencia a Usina Açucena, pedaço de terra que ia além daquele espaço que ocupávamos. Comíamos do que a terra nos dava e do salário que meu pai ganhava por ser funcionário da Usina.

Nossa casa era velha, pois outras famílias já tinham passado temporadas ali. Quando meus pais chegaram já encontraram muitos pés de árvores que davam sombra e frutos: jaqueiras, jabuticabeiras, abacateiros, bananeiras, mangueiras, coqueirais, laranjeiras. Meu pai plantou outras mudas e construiu uma casa de farinha. Ali nós e outras famílias preparávamos a mandioca para fazer farinha, beijus, broas, e outras comidas que os mais velhos sabiam preparar.

Na nossa casa não havia luz elétrica, nem banheiro, nem água encanada. Quando anoitecia, minha mãe acendia os candeeiros. Quando precisávamos de água íamos ao riacho que servia para tomarmos banho, lavarmos roupa e trazermos água para beber e cozinhar.

Meus irmãos e eu nascemos nessa Usina, e sempre estivemos em contato com a natureza. A cana nos rodeava por todos os lados e apesar de tanta fartura de terra e canavial extenso percebíamos que o salário de meu pai era muito mirrado. Na nossa casa não havia luxo,só o necessário para nossa sobrevivência, mas uma coisa era certa: havia amor, respeito e saúde. E pra essas coisas não havia dinheiro no mundo que pudesse comprar. Havia muita cama e colchões velhos, tamboretes e uma mesa que servia pra tudo. Não tínhamos guarda roupa nem armário. Tudo era guardado dentro de saco ou caixa de papelão que meu pai trazia da cidade.

Minha mãe colocava a comida dentro de sacos de farinha e amarrava bem para os ratos não roerem e os colocava em lugar alto. Lá em casa havia um gato que ajudava no cerco aos ratos, mas de vez enquanto um arriscava pra saquear nosso estoque minguado de comida. Nossa roupa ficava nas caixas de papelão. Não eram muitas. Tanto prova que passávamos a maior parte pelados, e quando mais crescidos, apenas de calção.

Meu pai era um homem magro, alto, queimado do sol e no seu rosto nunca vi um sorriso. Parecia levar sobre si todo peso do mundo. Por isso tinha um pensamento de assim que pudesse iria trazer uns trocados pra ajudar aquele homem que trabalhava muito e descansava pouco. Nunca teve férias, nem aproveitou feriados ou o domingo; sempre labutando para sustentar a família. Trabalhava de sol a sol. Vivia montado num cavalo que parecia ser uma extensão dele mesmo, pois pra onde ia precisava daquele companheiro de quatro patas. Naquela época só quem usava carro era o dono da Usina e os ricões da cidade.

Minha mãe era baixa, magra e morena. Estava sempre ocupada. Poucas vezes a vi sentada, descansando dos afazeres. Era a primeira que levantava e a última a deitar. Estava sempre esperando um bebê ou com um de peito a tiracolo. Um dia ela acordou diferente. Vimos que seu jeito de trabalhar era lento, passou a encostar-se nas paredes, percebemos que estava muito doente, e foi esse o sinal que recebemos quando ela já estava para nos deixar. Cuidou de todos nós quase às vésperas de deitar pra não se levantar mais. Descansou da sua labuta de mulher do campo, de mãe amorosa e de esposa companheira.

Poucas vezes sai da Usina. Lembro que um dia chegaram umas amigas de meu irmão Ricardo. Vinham com o objetivo de conhecer a vida no mato. Tinham medo de tudo, e tudo era novidade para elas. Após dois dias, resolveram retornar para suas casas e convidaram meu irmão para ir junto. Meu irmão não só aceitou o convite como também me levou junto. Confesso que agora quem estava com medo era eu, e pra mim tudo era novidade. Quase não acreditava quando via pela janela do ônibus aquelas imagens que passavam correndo sem que eu tivesse tempo de assimilar tudo a minha volta. Na cidade, estranhei a quantidade de gente, aquele vai e vem; o barulho, a impressão de que todos viviam com medo e sempre com pressa.

Senti saudade de casa. Chorei escondido, pois temia que mangassem de mim. Mas minha primeira experiência com a cidade não me deixou uma boa impressão.

As pessoas na cidade vivem em gaiolas, aprisionadas dentro das próprias casas. Não usufruem da vida, não sentem o cheiro do mato e da terra. Não ouvem o canto do dia nem o canto da noite, porque vivem ouvindo um canto que não faz bem a alma: o canto do sempre querer mais, poder mais, sentir-se mais... No meu espaço ouço o canto do dia: o do nascer do sol, do orvalho, do pássaro, das águas no riacho, do coaxar do sapo,... O canto da noite: a lua saindo por detrás das canas, a coruja, dos pássaros se agasalhando, o vento embalando as folhas, o orvalho preparando a terra, as nuvens fazendo peraltice lá em cima, as estrelas piscando para seus admiradores... O cheiro da flor do campo, da fruta amadurecida no pé, a lenha crepitando e esquentando,...

Isso é que é vida. Vida em abundância. Colorido, frescor, espaço.

Pela manhã subíamos nos pés de jaca e na mangueira, a procura de frutas para a nossa primeira refeição. Dormíamos de janelas abertas, e em noites de verão, sentávamos no terreiro, sob a luz da lua contávamos histórias, e cantávamos canções do tempo do rococó. No inverno, assentávamos no terraço, acendíamos uma fogueira e ali nos esquentávamos. Assávamos milho, batata e banana. As horas passavam sem que déssemos conta. Aqueles momentos serviam como terapia e unia mais e mais a nossa família e os visitantes que não eram poucos.

O que perdíamos como pessoas que vivia longe das cidades grandes, ganhávamos em qualidade de vida. Hoje, depois de tantas tentativas, e olhando para trás, não me arrependo de ter retornado a minha terra.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 14/04/2009
Código do texto: T1538853
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