Entre muros: as galinhas

Lúcio Alves de Barros*

Quando criança o meu pai, oriundo da roça, dizia da importância de cercar as galinhas com muros e cercas. Naquele tempo morávamos em uma casa alugada e minúscula na cidade de Rio Pomba, interior de Minas Gerais, zona da mata mineira. Tínhamos aproximadamente 30 galinhas e dois galos em um local muito pequeno. Fato este rapidamente resolvido já que não tardou o aumento do nosso empreendimento para a garagem a fora e colocássemos nela uma nova cerca. As galinhas eram bonitas, gordas, andavam sambando e botavam muitos ovos e vira e mexe eu ia lá ver os galos brigarem de vez em quando. O cuidado era tanto que meu pai tinha o péssimo hábito de dar banho nas galinhas com xampu. Minha amada mãe ficava brava, mas longe dos olhos do pai acabava concordando que elas ficavam mais bonitas e vistosas, principalmente quando o sol batia em suas penas douradas e lisas. Tempos bons. Todavia, também no mundo dos milhos e das rações nem tudo são flores. Acordar com as galinhas era muito difícil. Tente para você ver. Elas dormem muito cedo, não respeitam sequer o horário de verão, adoram um escândalo e acordam em plena madrugada. E é aí que as coisas saem do controle.

Na casa que não era nossa tínhamos que tolerar bons vizinhos os quais do outro lado do muro não tratavam de galinhas, mas adoravam uma baita de uma cadela policial – uma espécie de mistura da raça pastor alemão e rottweiler que, aos meus olhos de criança tinha uns dois metros. A danada era bonita, forte, potente e onisciente. Eu ficava horas e mais horas calculando com pimentas, remédios velhos, água de esgoto, perfume e materiais de limpeza uma fórmula para matá-la. Nada contra os vizinhos. Muito pelo contrário, eram gente do bem e minha mãe os amava como se fossem de nossa família. O problema era a Laica, esse era o nome da bendita cachorra que tinha uma boca enorme. Ela definitivamente não respeitava a vida privada e pública das galinhas. Quando chegávamos ao galinheiro ela fazia a festa e não parava de latir e pular próxima ao muro. No entanto, quando uma galinha subia no muro para tomar um ar a danada ficava caladinha. Cachorra esperta, pois ela aguardava ansiosamente (eu escutava a sua respiração) que a coitada da bela e gorda galinha que havia tomado banho de xampu caísse no quintal alheio. E quando caia lá ia meu coração de criança e minhas lágrimas de adulto, pois cabia somente escutar a corrida desesperada do pássaro em frente àquele dinossauro de quadro patas que em zigue e zague perseguia o pobre animal. Em segundos, o cansaço abatia a gorda e bem tratada galinha e levava à felicidade a bem cuidada Laica. É bem verdade que raramente ela perdia a corrida, às vezes a Laica dava azar, pois algumas galinhas detinham um dom especial de voar por metros e aos pulos diante do bicho, elas se saíam bem e saltavam com força para o outro lado do muro onde se encontrava eu e meu pai doidos para festejar o retorno da "Amarela", da "Maria", da "Estrela", do "Pedro", da "Jacinta", da "Bolota" e assim por diante. Naquele tempo colocávamos nomes nas galinhas que dificilmente iam para a panela. Elas botavam ovos até morrer e, em certa medida, faziam parte da família. Quando falecia uma galinha querida, ela tinha direito a orações, minhas lágrimas e um enterro digno de sete palmos abaixo da superfície da terra.

Lembrei-me desse episódio devido à fantástica idéia do Governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho (PMDB). O governante, no alto de sua inteligência acordou em um dia destes e teve a idéia de construir um muro ao redor de algumas favelas. Nossa! Fiquei entusiasmado, pois a ótima e “inédita” idéia do Governador era a mesma do meu amado pai. Logo, pensei: “Encontrei mais um que entende de galinhas”. Veja o que o governador disse: “o muro é um instrumento de ordem e civilidade” (Revista Veja, 2009, p. 40). Realmente! Sérgio Cabral está certo, as galinhas lá de casa ficavam em ordem, principalmente quando chegávamos com o milho e com a ração. Pegá-las era difícil, mas entre muros, sempre elas cansavam. A Laica quem o diga. Até porque o nosso interesse era o mesmo do Governador, “melhorar a vida” das galinhas, e, por conseqüência, a nossa. Infelizmente ajudávamos a beça o vizinho, pois o monstro da Laica sempre estava por lá. E por que os muros. Ora! Para todo galinheiro dar certo temos que melhorar a “infraestrutura”, senão perdemos o efeito do milho, dos banhos de xampu, de sol e das rações especiais. Também é sempre importante prender as galinhas para que elas não invadam as hortas. Tal como pensa o Governador em relação à “nova” política pública: “a expansão física das favelas sobre a mata é uma séria ameaça ambiental” (Revista Veja, 2009, p. 40), também pensávamos em ralação as galinhas.

Quanto às benfeitorias que fazíamos as galinhas pareciam gostar. Pelo menos não reclamavam. Novos bebedouros? No início chegavam devagar, mas logo, logo estavam lá se empanturrando de água misturada com suco de limão (outra mania de meu pai). Também colocávamos muita areia no galinheiro, mas a separávamos da água e do local de alimentação. Galinhas têm cloaca e areia é ótima para a digestão delas. A divisa que fizemos, entretanto, não era obstáculo para elas irem e virem, tal como as galinhas de Cabral “o infeliz Muro de Berlin, na Alemanha, impedia a passagem das pessoas do leste para o oeste. No Rio, não. O morador vai continuar subindo e descendo o morro quando quiser” (Revista Veja, 2009, p. 40-41). É o mesmo que pensávamos quando era ainda infante. O raciocínio do Governador é genial, inclusive, no que diz respeito ao direito de ir e vir. Lembra quando comentei que as galinhas, por vezes recalcitrantes, ficavam em ir ou não para o lado alheio? Cabral resolveu esse problema: “o muro só vai evitar que a favela cresça nas laterais e para cima. Falar mal do muro é demagogia barata”. (Revista Veja, 2009, p. 41). Também acho: muros são essenciais para segurar homens e galinhas.

Pensem bem, o grande Estado de Direito novamente opera e navega nas entrelinhas da liberdade individual. Para um Estado Penal, o qual novamente teima em tratar seres humanos como animais, o muro é uma excelente idéia. Ele vai partir o que já está partido há tempos. O Governador, ao contrário de nós, possui em seu poder uma importante máquina de comer galinhas, tal como era a máquina de nosso vizinho. Nada contra a Laica, mas tudo contra um Estado que pode do outro lado do muro fazer o que bem entender com os cachorros de raça e sem raça que tem. Cabral é um excelente Governador e administrador, quanto a isso não tenho dúvida. A idéia do muro é genial, ela passa por cima das idéias de dar cara nova às favelas simplesmente pintando elas de cores mais "atraentes", do famigerado dirigível, de câmeras ocultas, dentre tantas outras idéias dos "doutos" em políticas públicas. O curioso é que o muro cumpre uma interessante função, aquietar, colocar em sossego, botar todo mundo junto, encarcerar a céu aberto, retirar a liberdade sem que os animais fiquem sabendo e, por último, amansar e domesticar os comportamentos indesejados. Por sinal, novamente lembrei-me o porquê da insistência do muro no galinheiro: na memória veio a Jacinta, uma galinha pacata, meio malandra e boa em escândalos. Era o jeito dela, mas era inegável que se tratava de uma galinha que não faltava em botar os ovos e cuidava bem dos seus pintinhos. Um defeito, contudo, era de causar mal estar até a São Francisco. Parecia de propósito, mas a Jacinta fazia cocô onde lhe dava na cabeça. Histriônica, escolhia os melhores lugares para ela e os piores para nós, como a entrada do galinheiro, dentro da água, ou em meio à ração e os milhos.

Um fato interessante e risível sempre acontecia quando os amigos iam à minha casa. Comentei sobre o brilho das galinhas devido ao banho de xampu. Os amigos e certamente os inimigos não perdiam a oportunidade de rir de nós, mas eram incapazes de perceber que o interesse era vender as galinhas que, apesar de bonitas, eram “ruins de bota”. Genial! O Sérgio Cabral pensou até nisso: “tenho de vender o Rio” (Revista Veja, 2009, p. 41). Colocando muros o Governador deseja passar uma imagem diferente da cidade que já é a mais linda do mundo, no entanto, pretende esconder o quintal. É o que fazíamos em nossa casa. Muramos o quintal, o cocô das galinhas fedia demais e não era bom que alguns vizinhos ficassem a sentir aquilo. No fundo queríamos ordem, mas não sabíamos que aquela era a ordem natural e normal das galinhas. Daí o episódio da Laica ser sempre doloroso e dramático.

Agradeço a entrevista da Revista Veja, muito cuidadosa, e ao Governador do Rio por ter me lembrado do galinheiro lá de casa. Mas não gostei muito da lembrança da danada na Laica. Fiquei matutando se o Governador pensou naquelas galinhas que não vão ficar entre os muros que ele pretende construir. Imaginei um monte delas dependuradas naquele cai e não cai de um Rio de Janeiro há muito partido e violento. Pensei mais, um bando de gente, tal como as galinhas se equilibrando em cima do muro, mas tomando tiros de todos os dois lados: dos traficantes encarcerados e bem escondidos como os vietcongues e da polícia do Rio que entrincheirada no lado bom do muro vai poder praticar com maior acuidade os poucos tiros que andam dando nas favelas. E em momento de pura nostalgia a memória não me faltou e lembrei-me das galinhas que caiam e aos poucos eram comidas pela danada da Laica. Pensei na tortura que era aquilo. A cachorra era sádica e tinha o gosto de comer aos poucos, às vezes só matava. O dramático era o como ela desfrutava do “prêmio”. Agarrava com força as costas da galinha (lembro como se fosse hoje o lamento triste da "Isaura”, uma galinha branquinha que minha irmã gostava) e aos poucos ia fincando os dentes por baixo de suas asas e arrancava aos montes a pele e as penas. Mordia o pescoço e num forte solavanco o quebrava, batia com as patas nas pernas e depois reservava um grande tempo mascando a parte inferior do pássaro. Abatidas as coitadas sangravam e lentamente - não poucas vezes - a Laica arrancava uma das pernas, mascava como chicletes e depois ia empurrando o corpo para um canto da casa. Sinceramente, querem saber de uma coisa: tais lembranças não valem agradecimentos. Retiro o que disse acima e peço ao Governador, com sua brilhante idéia, que passe a tomar cuidado com o muro. Não somente ele, mas também as Laicas da vida. Ela era incontrolável, tal como o tráfico e a polícia do Rio de Janeiro. Penso mesmo que a Laica poderia, caso pudesse, ser uma boa secretária de segurança ou uma excelente liderança de uma milícia, haja vista que escondia muito bem as galinhas dos seus donos. Finalmente, penso que o muro não foi uma boa idéia. A modernidade, um marco da “civilização”, fracassou com a construção de muros. Neste caminho, gostaria de verdade pedir desculpas ao meu pai. O nosso muro falhou. Falhamos com nossas galinhas, com nossa família e com os outros. Em nossa busca de justiça, de “civilidade” e “ordem” produzimos um campo de concentração e, sem querer, tiramos da Laica o que ela tinha de pior, pois antes das galinhas ela nunca dera trabalho. Um grande remorso carrego agora, depois de adulto. A Laica morreu e no seu lugar foi colocado outro monstro. O meu pai morreu e em seu lugar não foi permitido colocar ninguém. Minha infância se foi e tal como o Governador eu e meu pai erramos. Erramos feio, vergonhosamente feio, pois não tínhamos como controlar o incontrolável. Não tínhamos o direito de domesticar os bichos a ponto de eles irem para o lado da Laica. Torço para que o Governador não precise carregar o remorso que carrego. Suas galinhas são muito mais valiosas. Sei que para muitos elas nada valem nada. Em tempos de “modernidade excludente” alguns seres humanos ficaram descartáveis. Mas, Cabral não desista delas. Vale à pena tentar alternativas. Tal como o apóstolo Paulo gostaria de dizer à sua genialidade que, quando criança eu pensava como tal e agora que fiquei adulto penso muito diferente. Faça o mesmo e não brinque com as galinhas, tampouco com as Laicas. Não cause maior desconforto ao seu ninho na burra tentativa de “manutenção da ordem”. Busque novas possibilidades, pois creio que não merece passar por todo o remorso e sentimento se culpa que acabo de sentir.

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* - licenciado e bacharel em Ciências Sociais pela UFJF, mestre em Sociologia, doutor em Ciências Humanas: sociologia e política pela UFMG. Autor do livro, Fordismo: origens e metamorfoses. Piracicaba: Ed. UNIMEP, 2004; organizador da obra Polícia em Movimento. Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006 e co-autor do livro de poesias, Das emoções frágeis e efêmeras. Belo Horizonte: Ed. ASA, 2006.