A Chuva Que Sabia Demais - Um Ciclo da Água

Começara a entardecer. O Sol ainda resistia por cima das colinas. Esperava algum sinal para pôr-se, tão cansado. Ela olhava para cima em busca de algo no ar da tarde. Plátanos com ouriços e folhas verdes. Tantas perguntas sem respostas. Tanta insegurança. Procurava um cheiro, uma sensação de frescura natural que lhe restituísse um pouco de tranquilidade.

As nuvens haviam chegado brancas. Rapidamente tinham evoluído para rosa e passado a cinza carregado. Eram agora nimbos sobre cerros. E a eminência de chuva era um prenúncio quase cumprido. O ar tornou-se mais denso. Estavam mais sombrios os ouriços. A respiração mais ofegante. O coração mais aflito. Queria saber. Precisava de provas. A dúvida ia corroendo a sua consciência.

Sentiu o primeiro pingo na ponta do nariz. Mais duas na boca. Lambeu-as. Eram espantosamente doces. E já um dilúvio se abatia sobre ela. Com fúria. Com pressa. Água e mais água encharcando e envolvendo-a. Ficou quieta. Recebendo todo o caudal que lhe invadia o corpo. Parecia que aquela chuva lhe vinha transmitir algum recado urgente. Abriu a boca e bebeu o que conseguiu recolher. Era mais do que doce. Era mel puro.

Fazia cinco anos que acontecera. Melhor, iria fazer cinco anos no fim-de-semana.

Era Domingo. Quando acordou ele já não estava na cama a seu lado como de costume.

De resto a casa permanecia igual. Tudo estava ainda idêntico. Até o silêncio. Só começou a mudar depois. Com a ausência continuada. O cheiro de hoje já nada tinha em comum com o de outrora. O odor dos compartimentos era mais seco. Mais simples e triste. O silêncio falava agora um outro idioma.

Queria entender. A água trespassava a roupa e colava-se-lhe à pele. Entranhando-se na derme. Falava com ela. As pequenas moléculas de H2O entrando nas células, trazendo novas. Banhando os interstícios. Murmuravam. Explicavam como tinha sido. Diziam-lhe o que faltava contar.

Lentamente ela ia recebendo os sinais. Absorvia-os por toda a extensão do corpo. Não existiam barreiras para aquela chuva. Ela se infiltrava por todos os poros da pele. Vinha decidida e determinada a revelar o que havia ficado escondido. Chegara a hora da claridade. Daquela água se faria luz.

E então ela viu. Viu como se olhasse directamente para a realidade. Ele entrando no carro sob a ameaça de uma pistola. Viu a violência com que o empurraram para dentro da viatura. Viu o seu corpo já cadáver sendo lançado numa cova. Viu a decomposição do organismo misturando os seus elementos com a terra. Viu os seus átomos serem absorvidos pelas raízes das árvores. Viu a seiva subindo até aos ramos mais altos. Viu o vapor subir na atmosfera. Viu as nuvens rebentarem. Viu-se receber aquela chuva doce que sabia tão bem. Viu as partículas deslizando pelo seu corpo dentro cumprindo um perfeito ciclo. Viu que a vida desenhara, na sua carne, um círculo. Com água.

Este texto faz parte do III Desafio Recantista de 2009.

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AnaMarques
Enviado por AnaMarques em 17/04/2009
Reeditado em 17/04/2009
Código do texto: T1544245
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