O amor que fica


Estava olhando meu caderno de registros da pastoral a qual participava, assiduamente, e acabei lembrando as reações dos presos durante as palestras, os seminários e as interações realizadas dentro da Cadeia.
Sinceramente, as poucas vezes que ia em missão de trabalho evangélico, da pastoral que participava, acabava sentindo uma sensação de carga pesada, mas não sentia medo, gostava de ouvi-los.
Entretanto,quando entramos num ambiente assim, corremos riscos de nos tornarmos reféns, ou passarmos por qualquer tipo de violência, mas o risco faz parte da vida e a violência mora ao nosso lado. Ninguém está isento de não sofrer violência. Achar que a fatalidade só acontece com os outros é um pensamento estúpido e ingênuo. Logicamente, devemos evitar, mas não implica dizer que seja de forma excludente.
O que mais me chamou atenção, numa dessas visitas, foi o depoimento de um homem que estava cumprindo pena por homicídio. Ele falou-me com lágrimas copiosas em seu rosto:
- Nunca pensei que me tornaria um assassino... O que mais dói em mim, não é estar aqui - porque eu mesmo me entreguei, mas é ter interrompido meus sonhos por causa de uma bala. Eu defendia muito a vida, como pude ter agido assim?
Depois, refleti que não sabemos ao certo de que somos capazes, porque cada momento vivido pode nos trazer surpresas e, se não estivermos com serenidade espiritual, e equilíbrio nas emoções, podemos agir por impulso e acabar sofrendo as conseqüências.
Por mais que, quem tire a vida de alguém se arrependa, isso não a faz viver novamente. Os estragos ficam marcados na linha do tempo, na família e na sociedade. O prejuízo é para todo mundo, visto que, ao passo em que se dá uma ação negativa e destrutiva, a probabilidade é de aumentar as feridas sociais, porque a perca de um ente querido, por homicídio, causa revolta, vingança, intrigas e danos emocionais irreparáveis.
Por outro lado, penso que tem muitas maneiras de se matar sem ferir o corpo.
Quantas vezes não escutei pessoas dizendo que não tinham mais vontade de viverem, por terem sido marginalizadas de alguma maneira! O motivo? Por frustrações, desenganos, por terem sido humilhadas, por sofrerem estupros, ou até mesmo pela falta de oportunidade de se refazerem, reconstruírem suas vidas e viverem dignamente na sociedade.
Ah, deveria não ter aberto este caderno hoje... Quantas vozes meu Deus!
O bom de tudo isso é que, enquanto vivemos, aprendemos, partilhamos saberes, sentimentos e somos capazes de construir pontes seguras para caminharmos e alcançarmos o “Bem Maior”, a felicidade dentro de cada um de nós, a nossa harmonia interior.
O contato com as pessoas que conhecem realmente o que é sofrer serve para percebermos que tem sempre alguém que precisa de nosso otimismo, nossa alegria... Um sorriso de amor e esperança.
Ora, é muito fácil amar o que é belo, ajustado, sociável; difícil é viver o amor de dentro para fora por aqueles que precisam de, no mínimo, que o escutemos, que estendamos a mão, e ajude de alguma maneira a sair do fundo do poço. É uma atitude melhor que apontar erros, pois não temos o direito de julgar ninguém.
Virei a página e encontrei a fala dos idosos que moram em instituições de apoio filantrópico e, olhando as imagens e depoimentos, ainda me lembro do carinho que tinham por mim - e eu por eles; as histórias engraçadas que contava só para vê-los felizes, sorrindo.Tinha um garoto que só me chamava de tia, um senhor que dizia que quando eu chegava lá, a casa ficava cheia de alegria...Vesti-me até com roupa de palhaço pra animá-los. Levava CD e DVD, para dançar e cantar com eles, contava piadas, e ainda dava cheiro nos carecas e, brincava ao dizer que ainda ia namorar com um deles – um que tinha lindos cabelos grisalhos –, mas era só pra distrair. Tinha muito respeito por cada um deles.
Fechei meu caderno e vou virar a página do dia de hoje, pois me sinto momentaneamente como aqueles idosos, querendo colo... Não gosto de me sentir assim, não tenho este direito, nasci pra ser alegre e divertida... Hoje meu coração está feito palhaço, faz alguém rir muito, mas por dentro tem horas que fica aos pedaços.
Tudo passa... Só não passa o amor que fica.




 

Antonia Zilma
Enviado por Antonia Zilma em 26/04/2009
Reeditado em 14/09/2022
Código do texto: T1560775
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