BAILE DA PICARETA

Era mais um 24 de junho. Lá no Girau, São João já esperava ansioso quadrilha, fogueira, bumba-meu-boi, farinha de amendoim, canjica, quentão e... briga. Todo ano um recorde de altura da armação da fogueira, verdadeira obra da arquitetura popular. Os paus-toras sequinhos entrelaçados de forma quadrada por uma altura de mais de seis metros. Dessa vez o primo Zinho e Tio Anselmo queriam 9 metros. Foram aconselhados a não arriscar a segurança da criançada e dos demais convidados.

Tudo igual. Somente depois de o sol deixar a fazenda, a festança tinha início. Fogueira a crepitar e o boi-bumbá surgia chifrando a todos pela frente. Dessa vez o mestre de cerimônias ( o boi) era o primo Zinho; estava a assumir a tradição em lugar do meu tio.

“Vem cá meu boi! ê boi! esse boi é manco! ê boi! esse boi e bobo! ê boi! Não pega ninguém! ê boi!”. Essa canção-folclore era mágica. Usava-se o mesmo refrão e a criatividade ia mudando o verso. A provocação ao boi era a grande emoção e alegria e pernas-para-que-te-quero ! Senão o boi pegava adultos e crianças brincando juntos. A comilança era generosa. Quentão era bebida das mulheres e crianças (bebiam ocultas dos pais), e a cachaça entornava solta, esse era todo o perigo.

Os jovens, sempre após as nove da noite , iniciavam um baile. O toca-discos - o mesmo em anos ! – fazia a festa e enchia o salão da casa da Tia Donata. Até os velhos se enroscavam. Sá Romana e Tizé Adriano eram os mais animados. Moça esperava ser chamada para dançar, não se oferecia que era feio. Os pares iam trocando. Era deselegante recusar convite. Alguns homens tomavam como desfeita. Maria recusou Tóim Mindinho e, já há muitos goles da pinga farta, ele se magoou e disse a ela: “se não dança comigo, não vai com mais ninguém!”. Ela teimou a aceitou dançar com um amorenado simpático cujos olhos já cruzavam com os dela desde cedo.

Toím não engoliu a humilhação; puxou de um canivete pica-fumo e avançou para tirar satisfação. O casal correu e se afastou da possibilidade do corte. O baile se espalhou num redemoinho com Toím pirado no meio, olhos vermelhos, bochechas bufando. Quem pode escapar para o largo do curral em frente ao casarão, foi correndo. Muitos se esconderam entre o gado já recolhido. O primo Zinho juntou o que encontrou de mulheres e crianças num quarto e travou a porta por dentro. Eu, trepado na janela lateral da sala, assistia a tudo sem perder um movimento. Tio Anselmo chegou tirando a camisa e, com experiência de malandro chamou para si o endemoniado do Toím. Ginga aqui, ginga ali, rodando pela sala. Toím feriu meu Tio na barriga que mesmo assim lutava. Tio Jerônimo, enraivecido, correu pela casa até o terreiro nos fundos e de lá trouxe nas mãos fortes, a única arma que encontrou. Arrastou Tio Anselmo para um canto e tomou seu lugar numa luta desigual e violenta: o canivete contra a picareta. Toím escapou de muitas picaretadas fatais, mas uma lhe atingiu o nariz e os lábios e ele tombou na hora. Tio Jerônimo, quase incontrolável, arrastou Toím para fora – sob pranto e berros das mulheres implorando para que poupasse e infeliz - e jogou-o ao relento ameaçando quem o socorresse. Ato contínuo, tomou meu Tio Anselmo nos braços, colocou cuidadosamente no caminhão e o levou à cidade para ser socorrido. Os homens, que ficaram, providenciaram socorro da polícia. Toím esperou moribundo mais de 6 horas para ser levado.

Felizmente, após uma manhã e uma tarde de espera, os tios retornaram da cidade. Foram esperados pela parentada com alvoroço e aplauso diante da constatação do Tio Anselmo são e salvo, apenas um enorme curativo na altura do umbigo.

A festa acabou, mas no caminho de volta, no jipe do meu pai, eu pensava em Toím. Pescamos juntos muitas vezes. Será que ele estava morto ?. Mamãe mandou a gente esquecer aquilo tudo.

Foi nas férias de antes de Natal, na fazenda, que nós avistamos Toím, vindo de passo lá dos confins da estrada. Aquela figura negra-de-angola relativamente do tamanho do dedo mindinho, vinha resolutamente em direção ao casarão. A aproximação dele espantou-nos para dentro de casa à procura do meu tio. Tonho, Gerson e eu, de olhos arregalados, anunciamos a malfadada e inusitada visita.

Tio Anselmo foi esperar Toím bem na porta da casa. Com o semblante gravíssimo esperou uma distancia bem curta para abordar o chegante. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Toím caiu de joelhos aos pés do meu tio e passou a lamuriar e rogar perdão, chorando e segurando as mãos de sua vítima, dizendo que nunca mais tomara cachaça e que por causa dela o capeta tinha se apossado dele, por isso teria ferido quase de morte seu padrinho. Pedia ainda, de volta, seu emprego na roça, porque estava passando fome e ninguém quis empregá-lo depois do ocorrido.

A cena que se seguiu, última dessa história, foi de uma grandiosidade, com um exemplo de bondade, humildade e coragem (as três virtudes juntas chega a ser um fenômeno) que marcou a minha vida. Meu Tio levantou Toím do chão, perdou-o, abraçou-o e readmitiu-o.