A Menina e o Escritor

A MENINA:

Sempre amou as palavras. Sozinhas, combinadas, rimadas, sem nexo. Palavras nunca têm sentido, elas diminuem e aumentam a intensidade das coisas sem pedir licença, é por isso que são tão intrigantes, tão misteriosamente apaixonantes.

Como era de se esperar, foi conquistada por um escritor. Aquele, que sabia usar as palavras como ninguém, detentor de poderes mágicos capazes de fazê-las transmitir exatamente o que ele queria, sem exageros nem reduções. Assim ela o via, já que o poeta, como o chamava, sempre lhe escrevia coisas belas. Não há razão para desconfiar que ele não as sinta, poetas sempre têm sentimentos bonitos e melancólicos, sentem saudades inexplicáveis e mais inexplicavelmente ainda conseguem descrevê-las para que todos chorem as lágrimas que seus olhos não derramam. Ela foi acostumando-se a receber aquelas linhas diárias, a memorizá-las com o coração.

Sim, as conhecia de cor, não de cabeça. Porque as via cheias de amor.

O ESCRITOR:

Sempre amou as palavras. Desde pequeno fazia jogos de combinações. Era metafórico, cheio de aliterações. Pensava o poeta poder pintar palavras pelo ar ao passear pensativo pelo parque. Sentia a tristeza do mundo descarregada em sua vida, mas não conseguia chorar. Escrevia bonito, em vez. Era pobre. Conseguia a admiração de muitos, mas não havia retorno suficiente para que ele vivesse sem um trabalho extra, qualquer coisa chata que rendesse um mínimo necessário para comer e pagar o aluguel de um quarto.

Acreditava que de amor não se vive. Muito menos de melancolia ou de palavras ininteligíveis para a maioria dos humanos que caminham sem tempo de sentir. Ele, que sentia muito, tinha que ser prático. Trabalhava como redator publicitário, então.

Mas era poeta e para não deixar-se esquecer, escrevia diariamente à uma menina, a qual parecia gostar tanto que morria de vergonha de responder com mais que dez palavras, temendo cometer uma gafe gramatical.

ELA E ELE:

Ela pensava no poeta o dia inteiro. Não, mais: dois dias inteiros em um período de 24 horas. Alimentava-se de cada letra como se amor fosse aquilo, de escrever palavras belas e combiná-las em uma estrofe.

Ele escrevia à menina o dia inteiro. Não, menos: metade do dia porque a outra metade era dedicada ao compre já, ao ligue agora.

Encontraram-se um dia e as palavras sumiram, engolidas por um longo beijo. Toda a poesia escrita, cantada, esquecida, apagada, nunca mencionada, uniu-se entre duas bocas e morreu. Por que morreu? Porque já era desnecessária, e tudo o que não serve mais, morre para que algo novo viva. Eram bonitos juntos, notaram no espelho. Um outro poeta mais famoso havia dito que corpos se entendem, almas não. E seus corpos se entendiam, em silêncio.

Mas ela resolveu fixar seus olhos nos dele para tentar enxergar sua alma. Viu ali um vazio de palavras, aquelas que um dia desenharam papéis. Tentava ler, fazia força.

Abria seu coração para sentir, mas não havia nada ali dentro dele e tanto dentro dela. As palavras realmente haviam morrido nos lábios do beijo. E sem elas, ele partiu.

Ela se foi também, para o outro lado, matando gestos de amor e colhendo de seus restos algumas palavras que havia ensaiado para quando finalmente estivessem juntos. Palavras que nunca foram pronunciadas porque ele as emudecera, como se estivesse fechando uma campanha publicitária.

Voodevilish
Enviado por Voodevilish em 28/04/2009
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