Meia volta

É, agora não dá mais. Foi depois que me atrasei para uma reunião importante numa fábrica - porque, apesar do calor, precisava encarar minhas botinas de segurança e, antes delas, as meias - que percebi que não dava mais. Perdi mais de dez minutos na busca de um determinado par (botinas de segurança sim, mas esculacho - jamais!), e como só encontrei um solitário pé, decidi que precisava urgentemente organizar minha gaveta de meias. Duplamente revoltada: pelo trabalho que não posso mais adiar e pelas meias que tive que usar, um par qualquer que encontrei completo no meio daquele 'imbroglio' de fazer dó. E, não, não era aquele que eu queria!

Fim de semana. Retiro a gaveta, levo a um local iluminado e, munida de paciência, vamos a ela. Na verdade a elas, as meias. Que de fato uso pouco, com tênis para as caminhadas e pedaladas, com as tais botinas de segurança para o trabalho quando ele assim me exige; assim, não consigo compreender porque tenho tantas meias, emboladas em pares jamais imaginados, algumas com furos dignos de nota (e de pena), e de tantos materiais diferentes – algodão, lã, nylon, lycra, e eu sei lá mais o quê...

Entendo que devo me livrar daquilo que não necessito, e com esse espírito inicio minha metódica tarefa de organizar pares, separá-los por afinidade (as de inverno, as de verão, as que deverão ir embora). O que dá para consertar, conserto; o que devo descartar, descarto. As que posso doar, doo. E das que gosto, gosto e pronto, ainda que velhas ou estropiadas.

Percebo, não sem um bocado de espanto, que estou gostando de organiza-las, e que me dá um certo prazer ver os pares formados, enroladinhos, separados por cores e tipos. Mas entre elas encontro um par diferente. Meias masculinas, pretas, quase novas. Um par esquecido na minha gaveta - ou nela propositalmente deixado. Um par de meias dobrado com o capricho e a organização típicos dele.

Meu método se desapruma, saio da rota, queimo num curto circuito. Meias dele. Não tenho onde deixa-las, e não sei o que fazer com elas. Se as esqueceu, precisará delas com o próximo terno que vestir, e assim devo mandá-las de volta, mas mandar para onde? Se as deixou propositalmente, é porque pretende voltar, e se voltar quando será? Por que deixou meias, e não outro item menos simbólico? São meias palavras, meias verdades, um meio termo entre o estar e o não estar. Uma relação pela metade, apesar do sentimento por inteiro. Estamos na metade da vida, da única que temos. Por que não começar de verdade, ainda que do meio até o qual chegamos, se daqui para frente não sabemos se ainda restaremos inteiros? Por que não podemos mais andar de mãos dadas - um par à meia luz, pelo meio da rua?

Sinto saudades do seu pé descalço roçando o meu, e da forma tímida como ele se apropria de uma minúscula parte de meu armário sem efetivamente desfazer as malas. Porque sempre é por pouco tempo, meia semana, um par de dias. Sorrindo, guardo as meias dele de volta na gaveta e no meio das minhas, agora já estranhamente ordenadas, à espera de que ele dê meia volta e venha busca-las, porque sei que ele virá: como um gato vadio, ele sempre volta. Um gato de sete vidas. E meia.

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Este texto faz parte do 4º Desafio Recantista de 2009.

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