O HOMEM DO BAR

Com vinte e poucos anos comecei a tocar um bar, que ficava perto da nossa casa, e que eu já frequentava, de vez em quando.
Para mim foi ótimo, pois já havia trabalhado em balcão, quando adolescente, e gostava de atender pessoas, e o bar do meu irmão seria mais uma fonte de renda para mim.

Posso dizer que fui criado frequentando a noite muito cedo, pois meus amigos sempre foram mais velhos do que eu, e por isto não foi díficil tocar o bar, pois conhecia todas as manhas. O bar 'bombou' e virou um sucesso na região, nunca teve tanto movimento.

Para mim era ótimo, além de me divertir, ainda ganhava um extra, mas não bebia nada lá enquanto trabalhava, talvez uma cerveja depois.

A clientela era bastante eclética, tinha policiais, tinha pessoas que já tinham tido problemas com a policia, tinha pobre, tinha rico, mas a maioria era de renda média e profissionais liberais.

Até que em uma determinada noite comecei a receber um cliente que sempre ficava no mesmo lugar, encostado numa pilastra que fazia o vértice, dividindo o balcão que tinha um ângulo em L.

Começou a vir de uma hora para outra e passou a ser costumeiro.
Eu notava que todo mundo tinha muito respeito por ele. Todos o cumprimentavam, mas logo já se afastavam, ninguém ficava muito próximo.

Ele passava uma autonomia e independência que eu inda não tinha conhecido, e olha que rodei mundo. Era silêncioso, mas aberto a uma boa conversa.

Era como se ali não tivesse ninguém que lhe merecesse muita conversa, e ninguém estava à sua altura isto dava para notar. Era sossegado e sem arrogancia, mas nada passava da sua vista.

E não era por medo que ninguem conversava com ele, era por respeito mesmo, isto era evidente, e ele ficava na dele como se dominasse a situação onde estivesse. Tomava uma ou duas cervejas e ia embora. Passou a ser costumeiro. Virou freguês.

Passou a vir com uma namorada e amigas delas, normalmente quando eu já estava para fechar o bar. Nestes casos eu fechava a porta e ficava quem estivesse lá dentro, até a hora que achassem conveniente.

Eu não tinha pressa, assim como qualquer comerciante, que queira se dar bem, não pode ter.

Este cara passou a ser o meu melhor cliente, o que gastava mais, mas sempre chegava no final da noite. Fiquei sabendo posteriormente o porque de tanto respeito que as pessoas tinham dele. E o cara não parecia ser osso fácil de roer mesmo.

Apesar de ser filho de um policial militar, ele havia sido solto, há pouco tempo, pois passou alguns anos cumprindo uma pena por formação de quadrilha de roubo de veículo. Isto no inico dos anos oitenta, quando ainda não havia muita concorrência, e cumpriu pena em Porto Alegre, entaõ o pessoal o cumprimentava e caia fora, mas ele não ligava, dava para ver.

Para mim a fisionomia dele me lembrava o Urtigão, dos gibis da Disney, cabelo desalinhado e bigode idem e olhos claros e um cara invocado.

Tinha sido criado na região e tinha deixado um passado que mantinha afastado os 'chatos' do pedaço, que se achavam "muito malandros".

Nunca fui amigo de ninguém e nem deixei de ser de alguém pelo que a pessoa já tivesse feito ou fizesse, nem pelo que ela tivesse ou não, isto nunca me afetou, ficava sempre na minha, pois, vivênciando a noite desde cedo, conheci todo tipo de pessoas e normalmente os picaretas eram aqueles que ninguém esperava que fôssem.

Aprender sobre pessoas foi a maior formação que tive.

E sempre gostei de trabalhar com o público e aquele cara me intrigava, pois ficava 'só na dele'. Os outros, normalmente mais metidos sempre baixavam a bola quando o mesmo estava lá.

O boteco corria normal, até que chegou um dia em que estavamos brincando com cartas, já perto da meia noite. Estavamos, eu, um policial civil, e mais dois clentes, quando chegou o Ní, como ele era chamado. Estava chapado, e enquanto jogavamos ele ficou jogando numa máquina de fliperama, de forma meio barulhenta, quando de repente quebrou o vidro da máquina, que devia custar, eu acho, uns trezentos reais. Um bom prejuizo para uma noite que tinha sido fraca.

O primeiro a ir embora rapidamente foi o policial civil, e os outros, também não perderam tempo e eu fiquei lá pensando em como ia conseguir cobrar daquele cara, que todo mundo tinha medo, ou respeito.

Entrei para dentro do balcão, e o Ní puxou um banco e pediu uma cerveja. Ficamos lá e como terminou o meu trabalho, me dei ao direito de tomar também uma cervejinha, e ficamos lá batendo papo.

Eu sempre comparo a profissão de vendedor ou negociante como a de um pescador. Voce tem que ter calma que o negócio se fecha sozinho. Saber este tempo certo é fundamental, e gostar de pessoas realmente, e não só de clientes ou números.

Uma venda ou negócio é mais ou menos por aí, voce deixa rolar, e não pode ter pressa em fechar nada, tem que conhecer primeiro o cliente, ver a nescessidade dele, e aí a negociação acontece naturalmente. E a grana que ia ganhar no negócio não me tirava do prumo, isto era conseguência.

Ficamos lá conversando, uma hora eu colocava uma cerveja e a outra ele pagava. Lá numa certa altura eu comentei que a máquina era alugada e que nós iriamos ter que pagar o vidro, mas não sabia quanto seria o preço.

Eu só lembro que ficamos lá conversando até às nove horas da manhã, o que para mim, na época, não era uma coisa muito incomum, e quando saimos ele falou: Ô 'bigode', me tratavam assim, eu vou pagar o vidro, só não posso pagar hoje, mas na semana que vem eu passo ai.

E eu lebro que falei algo assim, "ah, nem esquenta cara, a hora que der voce paga", e era verdade, nem estava mais me preocupando com o vidro, a amizade e o respeito mútuo que se formou ali não tinha preço.

Mas realmente na semana seguinte ele passou lá, apresentei a nota fiscal e ele me pagou.

Ficamos bons amigos, e o bar ganhou uma proteção especial, pois o 'dono do bar era amigo do Ní' e eu soube que em algumas rodas ele chegou a comentar que lá ninguém mexia, pois o 'bigode' é meu chapa. O bar ficou seguro, ganhou proteção, mas o Ní não usava arma, era como se não precisasse.

O que vou falar é uma incongruência, mas foi um dos caras mais íntegros (a seu modo), e depois, provavelmente, já na vida normal, que eu conheci, pois mesmo quando ele sabidamente ia pagar a conta com cheque que não era dele, ele não incluia a conta de ninguém, nem a minha, cada um tinha que pagar a sua, não incluia ninguém nos seus atos.

Foi um dos grandes amigos que eu tive na vida, que sabemos são sempre poucos, mas estes tipos de amigos seguem seus caminhos.

Às vezes, depois de fechar o bar, iamos com mais um ou outro conhecido para a cidade, terminarmos a noite nos restaurantes madrugueiros, que existiam naqueles tempos e nos divertiamos muito.

Bom, passou um tempo, o meu irmão já tinha vendido o bar e eu soube que a policia federal passou por lá, perguntando onde morava fulano de tal. Foi preso, pois, além de fumá-la muito, embora eu nunca tenha visto, começou a 'importar' maconha. Foi para a penitênciaria do Ahú, em Curitiba, e eu cheguei a pensar em ir lá fazer uma visita, mas achei melhor que não.

Ficou preso uns seis meses e quando o encontrei, um dia, falei que quase fui lá fazer uma visita, mas que achei que não seria uma boa e ele falou que aquilo lá não é lugar para visitas mesmo. Ficou lá uns seis meses.

E logo depois do bar, comecei a trabalhar com Seguros.

Passou-se algum tempo e eu nunca mais o tinha visto, só tinha sabido, uma época, pelo seu irmão, que dava risada do fato, que ele estava vendendo públicidade para o jornal da policia. Passou para o lado de lá e soube, por esse seu irmão caçula orgulhoso, que ele estava indo muito bem. 

E ai depois de uns cinco anos tive que ir no 'Eccosalva', um serviço de pronto socorro, que eu pagava para minha mãe e que como o plano de saúde passou a ter esta cobertura, fui lá para cancelar o mesmo.

E para minha surpresa quando lá entrei e pedi para falar com a pessoa responsável, dei de cara com o próprio, que me puxando para a sua mesa, disse que tinha casado com aquela moça que o acompanhava, às vezes, lá no bar, e que estava com dois filhos e, o principal, tinha parado com tudo, não fumava mais maconha, não bebia, só não tinha conseguido, ainda, parar de fumar, mas estava a caminho.

Fiquei muito satisfeito com o encontro e feliz de saber que ele tinha conseguido superar as dificuldades normais nestes casos, de ex presidiário, e encontrado um caminho melhor para a sua vida.

Passou mais alguns anos e fui numa concessionária da Volkswagen, a maior do sul do Brasil, e o encontrei novamente lá, era um dos vendedores de consórcio e voltando, no ano seguinte, para pegar um carro que eu tinha adquirido, o encontrei novamente e perguntei:

E aí Ní, como estão os negócios?

Está ótimo cara, neste trimestre fui o segundo que mais vendeu, dando a sua risada de quem conhece tudo na vida, mas logo vou ser o primeiro e rimos junto, mas ali havia uma despedida, não sei se vou voltar a encontrá-lo um dia.

Com a bagagem que aquele cara tinha, só podia ter se tornado um excelente vendedor. Assim como eu também sei que me tornei.

É, o meu tíno não estava errado, ele era e é um excelente cara, só estava passando por períodos erráticos, talvez em função da droga.

Confirmei aí, também, novamente, a importância que uma mulher pode ter na vida de um homem

Um abraço ao Ni que nunca mais vi.


'A felicidade provém do íntimo, daquilo que o Ser humano sente dentro de sí mesmo' Roselis Von Sass - graal.org.br




 
HAMILTON SERPA
Enviado por HAMILTON SERPA em 05/05/2009
Reeditado em 27/04/2016
Código do texto: T1578075
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.