O saudosista anárquico 


O saudosista anárquico é delicioso. E não venham vocês dizer o contrário e nem intuir conotações homo afetivas. Nada disso. Digo que é delicioso para homenageá-lo. O saudosista anárquico é do tempo em que delicioso não tinha conotações ambíguas. Deixemos isto muito bem pontuado.
 
 O que todos notam ao vê-lo – invariavelmente sob o efeito de portentoso impacto – são suas medalhas. Ele as possui as dúzias, todas sobre uma espécie de colete caramelo que sugere jamais ter sido lavado. Primeiro olhamos as medalhas, depois a cerrada barba espiralada para, enfim, prestarmos atenção à boina grená. Um primor de boina com um enorme broche do Che Guevara.
 
Chama-se Hector, mas, cá entre nós, não creio que seja esse seu real nome de batismo. Hector Santiago. Enfim, pouco importa. Importa-me, e acredito que isso valha para todos, o que ele fez montado no caixote de verduras tão logo sentiu que a feirinha do Catete já estava repleta de fregueses e freguesas.
 
- Povo da Ilha de Santa Cruz, começou bem, no cerne da ironia, para depois emendar:
- Nada disso é preciso. Navegar é preciso. Olhem as frutas! Olhem essas frutas! Envenenam-nos diariamente enquanto sorrimos diante da televisão. Só a revolução é possível. Só o resgate é possível!
 
Iniciei dizendo que o saudosista anárquico é delicioso. Não menti, mas dei a informação pela metade. O assistente do saudosista anárquico é ainda mais delicioso. Um anão. Um anãozinho que naquele dia calçava alpargatas, bermudão e camiseta com frases em espanhol. Uma maravilha. Ficava lá, o assistente do saudosista anárquico, fingindo-se invisível diante da freguesia, para, de quando em vez, formular deliciosas perguntas para o próprio saudosista anárquico. Uma simbiose invejável os dois. A primeira das perguntas, para usar um adjetivo apropriado, foi arrebatadoramente deliciosa.
 
Indagou pausadamente, enfatizando as sílabas tônicas com rara destreza:
 
- Senhor, com licença, senhor. Muito apropriado o seu discurso. Mas diga-nos: há esperança no caos?
 
Derramei o caldo de cana que já estava pela metade, sujando toda a gravata. Nem liguei. Não concebo quem ligasse.
 
- Sim, há. Prosseguiria apenas após coçar a barba e suspirar preocupado.
- a única saída é a militarização do proletariado. Precisamos pegar nas armas e retomar o que é nosso por direito. O melhor modelo é o militar, mas não nas mãos dos deputados. Políticos – TODOS ELES – (bradou com ambos os braços esticados) são o câncer desse país! A nova ordem está calcada nos antigos padrões. Vamos senhoras e senhores! Peguemos nas armas e marchemos na direção do futuro! Jesus pegou em seu cajado! Alexandre fez o que lhe era impossível! Fidel ainda vive!
 
Pausa teatral.
 
E de novo o competente anão:
 
- e os novos paradigmas? De nada valem?
 
- Os novos paradigmas são fruto da podridão do sistema. A única saída é pegar nas armas e justificar nossa função social libertária.
 
O saudosista anárquico estava fora do corpo, catatônico mesmo. Em dado momento chegou a se desequilibrar do caixote, sendo providencialmente amparado por seu assistente. Falou muito. Algumas coisas interessantíssimas. Eu, por exemplo, nada sabia sobre a revolução russa. Não que ele soubesse, mas de alguma forma gostei de ouvi-lo propagar nomes tão pomposos no meio da feira. Criméia? Alguém que viva por estas plagas sabe o que é? Pois ele sabia. Criméia. Vejam vocês. No Catete. Dentro da feira. Confesso que em alguns momentos achei o discurso um pouco enfadonho. Não concordei com o saudosista anárquico quando ele falou sobre música popular. Achei fora de contexto. Criméia. Isso sim eu gostei. E também da parte sobre a importante função feminina na revolução que idealizava:
 
- É preciso parir, senhoras e senhoritas! É preciso parir!
 
O saudosista anárquico ficou por lá uns quinze minutos. Ninguém o ouviu adequadamente. Apenas eu o fiz. Eu e seu assistente, naturalmente. Aliás, foi o próprio assistente que percebeu lá pelo final do discurso que era hora de mudar de local.
 
- Seu Hector, acho melhor sairmos. Vamos lá praquela praça no Cosme Velho (só ouvi porque estava praticamente ao lado do caixotinho).
 
- Armas, amigos! Armas!
 
E desceu sob meus aplausos, o que acabou por tirar um afetuoso sorriso do anão.
 
Foram embora sem que eu soubesse exatamente que tipo de relação mantinham. Só grana? Piedade? Humanidade? Compreensão? Carência?
 
Senti pena. Mas não foi deles. Bem ou mal estavam lá vivendo e se expressando. Minha pena foi de toda aquela gente que passava a metros de onde estavam aqueles deliciosos personagens e sequer olhavam pra cima em sinal de ‘alguma qualquer coisa’. Respeito, curiosidade, maledicência... Nada. Iam e vinha segurando embrulhos com frutas envenenadas.
 
A propósito, falam ucraniano, russo e tártaro na Criméia. Sua capital se chama Simferopol. Fica lá pelos lados do Mar Negro. Não é formidável? Mais do que isso, não é delicioso?